O eu e o outro
Gaspar Matos
Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real, literatura sim, e nada mais, Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não poderia chamar-se-lhe história, Tem a certeza, senhor doutor, Na verdade, você é uma interrogação com pernas e uma dúvida com braços. (Saramago, 1998, p. 16.)
Saramago e a História do Cerco de Lisboa deram o mote para umas linhas que vinha pensando já há muito, e que surgem na sequência daquilo que é a perceção do bibliotecário e dos seus pares, em função da formação base de cada um. Recordo três episódios, a propósito.
Passou-se o primeiro em Cascais, no 13º Encontro de Bibliotecas Públicas (2012). Palestrava e achei por bem passar uma mensagem de valorização do que fazemos, por entender – e ainda não mudei de ideias –, que de autoflagelação está o mundo farto, e nesta aldeia de bibliotecários ainda mais. Quem me lê já sabe que ponho sangue nas palavras, viro-as do avesso, distorço a sintaxe e invento verbos e adjetivos, se preciso for. Assim me expresso e procurei falar ao coração de quem ouvia (aos Quixotes, como recordo de vos – nos –, ter tratado na altura). Findo o tempo, alguém na mesa agradece a intervenção mas deixa um aviso aos incautos: “não nos podemos esquecer: o Gaspar é de Marketing”. Rimo-nos todos e penso que – inocentemente – até anui, mas fiquei pensando: será que por tal serei levado pouco a sério? Será que a formação de cada um traz um carimbo ao seu desempenho de profissional de informação e documentação? Que poderá não ser positivo?
Passou o tempo e com ele também o assunto se arredou da minha cabeça. Até que uma nossa colega alcança uma vitória profissional que todos vimos como justa. Eu, como muitos, elogiei o seu percurso e conquista, nas redes sociais. Resposta: “Gaspar, tu és de Marketing e consegues vender gelo a um esquimó! Vou levar estas tuas palavras em consideração nessa perspectiva.” Apesar de ficar feliz por, momentaneamente, me ter convencido que tinha superpoderes que iam desde o hipnotismo à manipulação das massas (e esta última capacidade até fazia sentido, por ter pai padeiro), vim a verificar que, afinal, a tal perceção era não só de uma mas de mais pessoas, e ambas meus pares: eu era a manipulação encarnada (aqui já não discordo em absoluto, pela afiliação clubística).
A última história aconteceu há dias, com uma colega com quem partilhava informações técnicas. Em dada altura, pergunta-me a formação base. Informando-a, responde: “LOL. Estupor. Pior que um sociólogo só um gajo do marketing”. Ou seja, riu-se mas mandou mais um golpe ao moribundo (que jazia já estendido em poça de sangue), e ainda teve tempo para um pontapé nas partes baixas aos amigos do Weber e do Durkheim.
Refiz-me dos embates após retirar centenas de estilhaços de vidro com uma pinça das sobrancelhas, afastei de mim a intenção de ver em cada licenciado em História um relicário, mastiguei o relatado e refleti.
Cada um, na sua diversidade, traz acrescentos essenciais às intenções, apreciações e contributos do todo. Cada um, no respeito pelas ideias e modos do outro, constrói um mundo mais criativo, mais avisado porque visto de diferentes perspectivas, mais completo, mais inclusivo.
Tive o privilégio de viver esta realidade nas BM Oeiras, onde uma das grandes mais-valias era – e penso que continuará a ser –, a multiplicidade de licenciaturas dos profissionais que, entretanto, adquiriram uma formação comum (a pós-graduação em CD); acrescia uma grande quantidade de assistentes técnicos com distintas áreas de estudo, muitos tendo frequentado o curso BAD e, posteriormente, a licenciatura da Aberta; e, por último – mas não menos importante –, uma boa percentagem da equipa tinha interesses próprios distintos, bem aprofundados (em música, design gráfico, entre outros).
Neste último capítulo, ainda hoje me surpreendo com a capacidade de aquisição de conhecimentos de modo informal por parte de alguns dos nossos (como é exemplo o Miguel Mimoso Correia, na área da informática).
Dito isto, e agora que já lambi as feridas todas mas, mais importante, penso ter deixado um contributo para uma discussão que julgo interessante, lanço o repto (ou a mim mesmo, que tenho um projeto de mestrado em banho-maria, ou a quem me leu): um trabalho académico sobre esta ideia que temos acerca do colega do lado é que era, não? Será que esta perceção é só para os marketers ou também varia em função de outros cursos, graus de instrução, situação na carreira (licenciados com contrato de assistente técnico, por exemplo – e há tantos –, contratados a “recibos verdes”) ou ainda outro fator que agora me escape?
P.S. – um beijo à Dora Pereira, à Zélia e à Rosa Lia. Nunca escutei as vossas palavras com malícia, mas sim à luz daquela perceção inconsciente que acho que todos temos e que merece ser analisada (ou acham mesmo que nunca olhei para um colega e pensei, com ar de desdém: vê-se logo que és de Letras…)