Juliana Monteiro*

O objetivo deste texto é relatar, em breves linhas, a experiência de tradução e localização da norma SPECTRUM, da Collections Trust/Reino Unido, por dois países que têm muito em comum: Portugal e Brasil.

É importante destacar como o marco inicial desta iniciativa a tese de doutoramento na Faculdade de Letras da Universidade do Porto de nosso colega Alexandre Matos. Ele levou a cabo a primeira tradução da norma SPECTRUM do inglês para o português no âmbito de sua pesquisa, tendo como instituição de apoio o Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. O próximo passo seria o encontro de portugueses e brasileiros na Conferência Anual do CIDOC na Romênia, em 2011, quando a idéia de fazer um trabalho conjunto relacionado à norma SPECTRUM foi ganhando os primeiros contornos. Outro ponto a ser mencionado é a atuação de nosso colega Gabriel Moore Forell Bevilacqua, responsável por trazer a idéia para o Brasil e fomentar a articulação de pessoas e instituições interessadas no projeto de lançar o SPECTRUM no país, em conjunto com Portugal.

Entre 2011 e 2013, ano em que Brasil e Portugal de fato iniciaram o trabalho conjunto, houve a concepção, em São Paulo, do projeto da coleção “Gestão e Documentação de Acervos: textos de referência”. Esta coleção nasce com a proposta editorial de trazer para toda comunidade lusófona, a tradução de normas, livros e outras referências importantes da área de documentação, tendo em vista a escassez de textos desta natureza em português.

Parte da equipe responsável pela tradução e localização do SPECTRUM no Brasil e em Portugal no dia do lançamento. Esquerda para direita: Juliana Rodrigues Alves (Univ. Porto), Mariana Martins (Museu da Imigração de SP), Marcia Mattos (Museu da Imagem e do Som de SP), Marilúcia Bottallo (Instituto de Arte Contemporânea de SP), Gabriel Moore Forell Bevilacqua (UFF-RJ), Juliana Monteiro (SEC-SP), Alexandre Matos (Sistemas do Futuro Lda e Faculdade de Letras da Univ. Porto) e Marília Bonas Conte (Museu da Imigração de SP e Museu do Café de Santos)
Parte da equipe responsável pela tradução e localização do SPECTRUM no Brasil e em Portugal no dia do lançamento. Esquerda para direita: Juliana Rodrigues Alves (Univ. Porto), Mariana Martins (Museu da Imigração de SP), Marcia Mattos (Museu da Imagem e do Som de SP), Marilúcia Bottallo (Instituto de Arte Contemporânea de SP), Gabriel Moore Forell Bevilacqua (UFF-RJ), Juliana Monteiro (SEC-SP), Alexandre Matos (Sistemas do Futuro Lda e Faculdade de Letras da Univ. Porto) e Marília Bonas Conte (Museu da Imigração de SP e Museu do Café de Santos)

O mês de abril de 2013 marcou o início dos trabalhos da equipe Brasil-Portugal, composta basicamente, do lado brasileiro, de profissionais voluntários ligados à Secretaria de Estado da Cultura, por meio da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico, do Museu da Imigração e da Pinacoteca do Estado, e, do lado português, por profissionais ligados à Sistemas do Futuro Lda. Vale destacar que nenhum de nós possuía até então uma vasta experiência com localização – o que se logo se tornou um desafio que exigiria muita dedicação e disciplina de todos. Nossa equipe é formada por profissionais com experiências distintas, mas que compartilham o desejo sincero de poder contribuir com a área de documentação em museus por meio da disponibilização de normas e textos de referência traduzidos e adaptados. Esta foi e é a força motriz do grupo.

A primeira coisa que se pode dizer sobre tradução, localização e revisão de um texto escrito em uma língua que não é a sua língua materna é que nenhuma dessas tarefas é fácil. No presente caso, estamos falando de uma tradução que envolveu o inglês e o português, que são duas línguas muito diferentes entre si. Acresce-se a isso o fato de que a tradução teve como alvo uma norma específica de uma área – a área de museus – o que exige sempre cuidado, pois estamos aqui nas terras das linguagens de especialidade. A tradução, bem como todas as outras etapas de localização e revisão, da norma SPECTRUM não envolveu apenas o conhecimento do inglês e do português pelos profissionais envolvidos, mas, sobretudo exigiu o reconhecimento de como se organizam as áreas de museu do Reino Unido, de Portugal e do Brasil, além do entendimento profundo da própria norma.

Sendo assim, perguntas como “Será que a ideia de acquisition no contexto da norma é a mesma coisa que aquisição para a área de museus no Brasil?” nos acompanharam durante todo o processo e nortearam nossa busca por respostas. Isso também nos mostrou que tal postura foi – e sempre será – uma base importante para a identificação dos significados de termos e seus correspondentes possíveis em diferentes línguas, bem como diferenças de ordem jurídica e administrativa de cada contexto. Feitas dessas considerações, nosso grupo estabeleceu basicamente três grandes frentes para organizar o trabalho.

  • A primeira foi direcionada a avaliar a tradução já existente com o texto original, tendo em vista que a língua inglesa possui palavras que muitas vezes condensam significados, sendo dificilmente expressos em sua plenitude em português (o que também acontece na situação inversa). Nesta fase, o grupo consolidou dúvidas e sugestões, que ora indicavam o uso de palavras com significado próximo, ora indicavam frases mais longas para explicar as idéias expressas em inglês. Vale dizer que esta etapa foi também aquela em que o grupo se dedicou a levantar grafias e significados de palavras que diferem entre o português de Portugal e o do Brasil (que foi o adotado na publicação).
  • A segunda foi direcionada à localização do texto traduzido da norma SPECTRUM para o contexto português e brasileiro. A localização é uma ação que visa, basicamente, adaptar um conteúdo traduzido para um contexto específico, considerando suas características sociais, culturais, legais, etc. Nesta fase o grupo voltou ao original em inglês em muitas ocasiões e se dedicou a repassar todos os termos e dúvidas identificados na primeira etapa, a fim de consolidar o texto final. Com essa perspectiva, se tornou possível preservar o espírito original da publicação, apenas com a adição de notas de rodapé para observar diferenças ou especificidades legais entre Reino Unido e Brasil.
  • Nos primeiros meses de 2014, iniciamos a terceira e última etapa, que foi a de revisão “fina” do trabalho como um todo. Essa etapa, em termos de processo de trabalho, foi a que mais exigiu da equipe envolvida concentração e esforço conjunto. Foram muitas horas de trabalho e dedicação, de idas e vindas, de ajustes e discussões sobre o que mudar, como mudar e até onde ir, tendo em vista o cronograma para envio dos arquivos para diagramação, aprovação dos ajustes gráficos e impressão. Nesta fase também foram produzidos os textos de abertura da publicação e todos os termos que foram consolidados foram também repassados para a parte textual e para os fluxogramas da norma.

Em agosto de 2014 tivemos finalmente a alegria de lançar a norma SPECTRUM no Brasil, junto com as Categorias de Informação e a Declaração de Princípios do CIDOC. O lançamento foi também o momento de fechamento de uma semana intensa de trabalho devido à segunda edição do Programa de Treinamento CIDOC/ICOM “Documentação em museus: princípios e práticas”, realizada em São Paulo com um grande número de participantes. Nesse dia, tivemos também o colega Alexandre realizou uma palestra de apresentação da norma SPECTRUM a uma audiência considerável que compareceu ao evento de dia todo em pleno sábado. Foi um momento muito especial para todos os envolvidos.

Capa da edição em língua portuguesa da norma SPECTRUM 4.0, também disponível pelo site: http://spectrum-pt.org/
Capa da edição em língua portuguesa da norma SPECTRUM 4.0, também disponível pelo site: http://spectrum-pt.org/

Por último, é sempre válido extrair aprendizados práticos e teóricos de tais experiências. Desta, fica a compreensão de que é necessário sempre admitir a relatividade dos significados das palavras, que podem variar de um país para o outro e influenciam o modo como pensamos, expressamos e praticamos ações documentárias. De acordo com Monteiro (2014), isso não é uma questão menor, principalmente quando estamos falando de documentação em museus, que opera basicamente com ações de representação de imagens, cores, narrativas por meio da linguagem escrita. Em outras palavras, os autores e profissionais que lidam com as questões documentárias em museus deverão aproveitar esses momentos de contato com outras realidades para produzir maiores avanços práticos e também terminológicos a partir da consciência do seu próprio lugar de fala. O mundo da documentação merece esse avanço, tanto quanto os avanços tecnológicos e a formulação de novas normas que vêm nos ajudar no dia a dia.

E é com esse espírito que mantemos a nossa intenção de querer ir mais além, colaborando com nossos colegas e com nossas instituições.

Referência:

MONTEIRO, Juliana. Documentação em museus e objeto-documento: sobre noções e práticas. São Paulo, 2014. 178 p. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

 

*Juliana Monteiro é graduada em Museologia pela Universidade Federal da Bahia, especialista em Gestão Pública pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e mestre em Ciência da Informação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Atuou como museóloga do Museu da Energia de São Paulo/Fundação Energia e Saneamento e, desde 2008, trabalha na Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Entre as suas atividades, está a coordenação do Comitê de Política de Acervo dos Museus da Secretaria e a administração do Banco de Dados de Acervo do mesmo órgão. Desde 2010, é professora do curso técnico de Museologia da ETEC Parque da Juventude/Centro Paula Souza, ministrando aulas sobre documentação e ética profissional. É membro do CIDOC-ICOM e da Comissão Editorial da Coleção “Gestão e Documentação de Acervos: textos de referência”, que publicou neste ano as traduções das Categorias de Informação do CIDOC e a norma SPECTRUM 4.0, em conjunto com parceiros portugueses Alexandre Matos e Museu de Ciência da Universidade de Coimbra.

 

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