Juliana Monteiro*
Conforme comentado no post do dia 07/10/2014 “SPECTRUM Pt: uma norma e dois países”, também foi lançado em São Paulo, em agosto de 2014, uma publicação que reuniu a Declaração de Princípios de Documentação em Museus e as Diretrizes Internacionais de Informação sobre Objetos de Museus: Categorias de Informação do CIDOC. Tendo em vista o texto anterior sobre a norma britânica SPECTRUM, cabe agora fazer breves comentários sobre o conteúdo da norma – que, neste ano de 2015, completa já 20 anos de lançamento e também tecer um relato sobre o importante exercício de tradução e revisão técnica feita no Brasil.
De forma parecida com a norma SPECTRUM, a publicação para a língua portuguesa sobre o CIDOC contou com o trabalho direto das equipes da Secretaria de Estado da Cultura, e de dois de seus museus: Museu da Imigração e Pinacoteca do Estado. Contou também com a colaboração do Instituto de Arte Contemporânea de São Paulo. A publicação também faz parte da coleção “Gestão e Documentação de Acervos: textos de referência”, que tem a proposta editorial de trazer para toda comunidade lusófona, a tradução de normas, livros e outras referências importantes da área de documentação em museus, tendo em vista a escassez de textos desta natureza em português.
Breve histórico da norma
Para entender o caminho que levou à criação das International Guidelines Object Information: the CIDOC Information Categories – ou Categorias de Informação como serão denominadas aqui – é válido antes conhecer alguns momentos da história do próprio comitê que as criou – estudo esse realizado como parte de minha dissertação de mestrado (MONTEIRO, 2014).
O Comitê foi criado no ano de 1950 por profissionais ligados ao grupo fundador do ICOM, e herdou diretamente a preocupação já existente com padronização de informação em catálogos de acervos, particularmente os de museus de arte, da recém-extinta Oficina Internacional de Museus. Nesse início de atuação, destaca-se a atividade da documentalista e bibliotecária Yvonne Oddon, que secretariou o CIDOC durante muitos anos.
Nos anos 1960, a atuação do CIDOC focou a realização de uma série de atividades destinadas à criação de modelos padronizados de fichas catalográficas e legendas para identificação de objetos (OLCINA, 1986). Um exemplo desse período, é possível destacar novamente a elaboração, por Yvonne Oddon, da ficha classificatória polivalente – Oddon 1. O modelo dessa ficha, com outras referências julgadas por Oddon como relevantes para o registro de acervos, foi incorporado ao seu importante manual Elements de Documentation Museographique/Elements of Museum Documentation, publicado em 1968 após um curso dado por ela em Jos, na Nigéria. Para os brasileiros, parte da estrutura dessa ficha está disponível no livro Museus: aquisição/documentação, de autoria de Fernanda de Camargo-Moro, publicado em 1986, que ainda é uma referência sobre o assunto no país.
Na segunda metade da década de 1960, quando toda a área de museus se tornou consciente dos benefícios da informática na documentação das coleções, o CIDOC passou a se preocupar em coordenar experiências para criação de sistemas computadorizados para museus. Segundo Olcina (1986), por volta de 1967, o CIDOC buscou criar um único sistema de documentação que pudesse abarcar as funcionalidades de todos os outros existentes à época, o que não teve o resultado inicialmente esperado.
A partir desse cenário, o CIDOC iniciou então um estudo para coleta e síntese de sistemas espalhados ao redor do mundo. Tal trabalho demoraria anos para ser concluído e, apesar do esforço de todos os profissionais envolvidos, não foi possível consolidar um número específico de procedimentos de documentação que abarcassem todos os museus em sua heterogeneidade. Olcina (1986) destaca que, na mesma época no Reino Unido, o Information Retrieval Group of the Museum Association (IRGMA)[1] lançou um formato mínimo de dados com esse objetivo. E mesmo não atingindo todas as realidades, tal formato foi adotado pelo CIDOC como base para continuação do seu trabalho de síntese de sistemas e diretrizes sobre documentação (OLCINA, 1986).
Apenas em 1978, na Conferência Anual do CIDOC na cidade de Julita/Suécia, Peter Homulos e Robert G. Chenhall apresentaram o resultado desse trabalho de tantos anos: um conjunto mínimo de dezesseis categorias de informação. Tais categorias foram tidas como básicas para identificação de um objeto, para registro de sua história, de sua proveniência e de seu uso, para a atividade de inventários internos dos museus.
A repercussão suscitada pelas dezesseis categorias indicadas levou o CIDOC a dar continuidade ao desenvolvimento do trabalho, que passou a ser concentrado, a partir do ano de 1980, em um grupo de trabalho denominado Documentation Standards. A parceria entre o CIDOC e membros da então MDA se firmou com esse trabalho, sendo notável a participação de Richard Light – MDA – na liderança desse grupo de trabalho, que tinha como propósitos atuar como fórum para discussão sobre padrões de dados de documentação em museus e elaborar uma referência flexível para descrição de tais padrões, de modo a facilitar seus desenvolvimentos e suas comparações (ROBERTS, 1996).
O CIDOC (1995), destaca que o período de 1980 e 1992 foi marcado pelo desenvolvimento intensivo de várias iniciativas paralelas para tornar possível abarcar todas as questões levantadas em 1978. Nesse período, o grupo de trabalho Documentation Standards seria subdividido, levando ao nascimento, posteriormente, de grupos de trabalho distintos – como o Data Standard e o Data Model. Entre as décadas de 1980 e 1990 há também uma preocupação do CIDOC com as questões de estudo e consolidação de terminologia, com a consequente constituição de grupos de trabalho dedicados à questão, conforme é relatado por Roberts e Fink (1990) – o que seria um movimento fundamental para a consolidação das Categorias.
Outro exemplo que ilustra o interesse é o lançamento do Dictionarium Museologicum, projeto coordenado e mantido pelo CIDOC. É possível inferir que a publicação teve várias edições durante a década de 1980, de acordo com as consultas a plataformas de pesquisa de acervos bibliográficos do ICOM e da USP, cujos resultados apresentaram apenas edições com datas de publicação entre 1981 e 1986. Apesar do dicionário não trazer definições que delimitam o campo nocional da Museologia, traz diferentes conceitos utilizados pela área e como são designados em diferentes línguas, entre elas, o português. Todavia, vale ressaltar que essa publicação é de difícil acesso, por não possuir edições mais atualizadas e poucos exemplares disponíveis para consulta.
Em 1992, a ação dos grupos de trabalho resultou na apresentação de uma proposta de categorias de informação e de um modelo de dados para o registro das coleções na Conferência Trianual do ICOM, em Québec, Canadá. A proposta foi analisada pelos outros comitês internacionais do ICOM que sugeriram a criação de apenas um documento que consolidasse as boas práticas existentes, e que pudesse ser amplamente difundido entre as instituições. Seria o começo, de fato, da elaboração das Diretrizes.
Uniu-se à iniciativa o grupo Data and Terminology, então liderado por Toni Petersen, que vinha trabalhando em um modelo de categorias de informação para arte e arqueologia (MATOS, 2007). Esse grupo de trabalho passou a liderar as atividades de desenvolvimento das categorias a partir de 1992. Do mesmo modo, outros grupos especiais do ICOM foram chamados, como o dedicado ao estabelecimento do Conselho Internacional de Museus Africanos – AFRICOM. Em 1994, na Conferência Anual do CIDOC, o documento resultante desse trabalho foi apresentado. Em seguida, passaria por uma extensa revisão, de modo a contemplar não somente as categorias de informação, mas também convenções sobre formatos de entrada de dados e questões relativas à terminologia.
Por fim, em 1995, é lançada as International Guidelines for Museum Object Information: the CIDOC Information Categories, elaborada a partir da experiência de profissionais de várias regiões do mundo, mas principalmente dos Estados Unidos, Canadá, França e Reino Unido. Vale reforçar que as Categorias nasceram não como um modelo único e universal sobre identificação de objetos de museus, mas como um ponto de partida. O motivo alegado pelos próprios coordenadores do projeto para terem renegado esse objetivo inalcançável foi sua inviabilidade na área de museus, que é extremamente heterogênea. E é nisso que reside a pertinência de sua tradução, mesmo que a norma não tenha passado por nenhuma revisão nesses 20 anos de existência.
As Categorias colocaram na pauta do dia a pertinência de uma proposta que não se fecha nela mesma, mas facilita o crescimento de um trabalho e do uso convergente de vários padrões – de estrutura de dados, de terminologia, etc. – que se completam. Ou seja, no contexto de lançamento do documento, já era consenso do grupo elaborador que apenas um padrão não seria a resposta, e sim uma possibilidade, demonstrando avanços em relação ao objetivo primeiro que balizou as revisões decorrentes da proposta de 1978.
Um primeiro – e talvez o principal – ponto a ser destacado sobre o exercício da tradução foi a questão da terminologia. E isso foi algo que existiu desde o título da publicação. Inicialmente, a decisão do grupo de revisão técnica havia ponderado sobre a possibilidade de usarmos o termo “documentação museológica” para traduzir “museum documentation” e “objeto museológico” para traduzir “museum object”. Porém, foi necessário ponderar que “documentação museológica” é uma expressão largamente utilizada no Brasil, devido à própria configuração da área da Museologia no país.
Em outras palavras, no Brasil a documentação realizada pelos museus é tradicionalmente reconhecida como uma atividade prática que se estruturaria a partir de pressupostos de estudos teóricos da Museologia, derivando daí o seu qualificador “museológica”. Tal entendimento, por si só, é passível de questionamento e crítica no âmbito da própria área no Brasil. Isso porque não necessariamente o que é “museológico” se restringe ao universo dos museus, tal como a documentação é hoje entendida. Mas, essa discussão, de foro mais teórico sobre as especificidades da Museologia, não é o alvo desse relato.
O termo “objeto museológico”, no Brasil, evoca uma discussão também profundamente teórica e que envolve a discussão sobre a natureza ontológica do que vem a ser “objeto”. Novamente, essa discussão compreende, em linhas gerais, que um objeto pode ser qualquer elemento existente na realidade social, que a partir do momento em que é percebido como um referencial de memória pode ser musealizado – não só no ou pelo museu – e ser transformado em uma fonte de informação (MONTEIRO, 2014). Logo, como nos diz Van Mensch (1992), o objeto de museu seria apenas uma possibilidade de objeto museológico.
Coube então à equipe ponderar que esse atrelamento da questão da documentação feita pelos museus à Museologia não era esse exatamente a base das Categorias de Informação, cujo contexto de origem foi e é ainda fortemente marcado por questões ligadas às questões práticas de gestão de acervos de museus. Diante disso, foi decidido que os títulos da publicação e todos os termos e conceitos utilizados na mesma deveriam ser traduzidos de modo a respeitar a contexto original do texto – fortemente europeu e estadunidense – que não tinha como preocupação imediata ou direta a relação da norma com teorias da Museologia. A partir deste partido, o grupo compreendeu que estaria respeitando o propósito dos autores da norma, abrindo mais frentes de discussão terminológica entre diferentes comunidades profissionais – dentro e fora do Brasil.
Outra estratégia adotada foi o uso de notas de rodapé para explicar determinados termos ou para comentar sua aplicação no contexto brasileiro, tendo em vista as questões legais específicas de nosso país no que se refere a determinados procedimentos, como coleta de acervo. Vale citar também que, além disso, o texto da Declaração e das Categorias não demandou maiores esforços de localização de exemplos ou conceitos.
Em termos de disponibilização à norma, foram impressos exemplares da mesma e uma versão digital para visualização e download através do site do Sistema Estadual de Museus de São Paulo: http://issuu.com/sisem-sp/docs/cidoc_guidelines/1?e=5520473/9572165.
E o futuro…
A comissão editorial da coleção “Gestão e Documentação de Acervos: textos de referência” continua na expectativa de traduzir e lançar novos títulos em 2015. A experiência de tradução da norma SPECTRUM e das Categorias de Informação do CIDOC foram muito ricas e com resultados muito positivos desde seu lançamento, e esperamos que, muito em breve, novos títulos sejam agregados e disponibilizados em língua portuguesa.
São Paulo, 29 de janeiro de 2015
* Juliana Monteiro é museóloga, analista de preservação do Museu da Imigração de São Paulo e professora do curso técnico de Museologia do Centro Paula Souza. Ex-assistente técnica de coordenação e coordenadora do Comitê de Política de Acervo da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Membro do CIDOC-ICOM.
____________________________________________
[1] Futura Museum Documentation Association, que mais tarde seria transformada no Collections Trust.