A documentação em museus, isto é, a gestão da informação sobre as coleções de museus, é uma tarefa complexa, demorada, dispendiosa e, infelizmente, pouco discutida nos fóruns de debate nacionais relacionados com museus e museologia, pese embora a sua considerável importância no contexto do conjunto de tarefas atribuídas aos profissionais de museus. A sua relevância, registada ao longo de toda a história dos museus, como bem nota María Teresa Marín Torres (2002) no seu brilhante estudo intitulado “Historia de la documentación museológica: la gestión de la memoria artística”, é baseada na percepção que sempre existiu, da parte de quem assume esta tarefa como sua, da necessidade de registos que permitissem a salvaguarda, conservação, estudo e divulgação do património cultural.
Para as instituições de memória, salvaguardando as devidas diferenças, o registo do património que possuem é, portanto, uma matéria essencial que desde cedo foi motivo de preocupação de arquivistas, bibliotecários e conservadores de museus. Em cada uma destas instituições, no entanto, as diferenças entre o objeto de estudo (documentos, livros e objetos) determinaram o caminho difícil, embora comum a todas elas, de definir regras de registo, catalogação e gestão da informação sobre os respectivos acervos. Esta necessidade normativa é observável, no caso dos museus por exemplo, através da utilização de sistemas de classificação (taxonomia e outros), cuja proveniência se intrinca na própria ciência que estuda os objetos de um acervo (biologia, zoologia , arte, técnicas, etc.), de que é o exemplo a sistemática de Lineu utilizada na classificação de alguns acervos de história natural, como bem nota Marín Torres (2002:131-132), reunidos ainda no século XVIII.
É no entanto no século XX, com a massificação dos sistemas de informação e comunicação que a normalização assume um papel imprescindível para a gestão de informação sobre os acervos museológicos. Este factor, observado por diversas organizações internacionais [1] de profissionais de museus ligados ao sector da documentação e gestão das coleções, tais como o CIDOC (Comité Internacional para a Documentação do ICOM), a MDA (Museum Documentation Association), atualmente Collections Trust, a CHIN (Canadian Information Heritage Network), a MCN (Museum Computer Network) e o Getty Research Institute, que desenvolvem, desde a sua criação, um conjunto de documentos normativos considerados atualmente referência internacional no sector. Como exemplo poderíamos referir o caso do CIDOC Conceptual Reference Model, atualmente uma norma ISO (ISO 21127:2006) [2] , ou o SPECTRUM [3] da Collections Trust como exemplo mais paradigmático de uma norma criada e desenvolvida por e para a comunidade de profissionais e em uso por mais de 7.000 museus em todo o mundo.
A produção normativa das instituições referidas tem crescido a um ritmo elevado nas três últimas décadas, centrando-se na criação de normas que poderíamos classificar em quatro planos distintos: Procedimentos, Estrutura de dados, Terminologia e Normas técnicas de divulgação e intercâmbio de informação.
As primeiras dizem respeito à definição dos processos utilizados comummente na documentação e gestão das coleções e tem como principal norma a nível internacional o SPECTRUM. É através desta primeira categoria de normas que conseguimos obter a informação necessária para determinar os requisitos de informação, definidos numa estrutura de dados, com unidades e grupos de informação, na qual estão também indicadas as relações existentes entre as diferentes tipologias de informação, e assim obter a segunda categoria normativa. A terceira categoria de normas prende-se com a criação de terminologia controlada (thesauri) a utilizar para o registo da informação relativa aos acervos dos museus. Esta terceira categoria de normas, a mais difícil e morosa de concretizar, é a que menos tem merecido a atenção da comunidade, com reflexo óbvio na falta de investimento nesta área, em Portugal, pelo organismo tutelar dos museus a nível estatal [4].
Por último, a quarta categoria de normas, atualmente com considerável importância graças à massificação da internet, que pretende esclarecer as regras a utilizar para a divulgação, curadoria e intercâmbio de informação nas quais se baseia a criação de projetos similares ao portal Europeana (www.europeana.eu) ou à britânica Culture Grid (www.culturegrid.org.uk) e o crescente número de sítios de divulgação de coleções online de entre os quais gostaríamos de destacar, pela inovação que apresentam, a do Rijskmuseum (www.rijksmuseum.nl/en/explore-the-collection) e a do Victoria & Albert Museum (www.vam.ac.uk/page/t/the-collections).
Estas quatro categorias de normas são igualmente importantes para o registo e gestão da informação sobre os acervos, sendo que um sistema de gestão de coleções fica necessariamente incompleto se não for compatível, ou se não permitir utilizar as normas de referência para cada uma destas categorias.
A normalização documental assume-se como essencial para os museus e para a gestão dos seus acervos. Sem normalização os sistemas de informação e gestão de coleções não poderiam existir. Sem estes não seria possível, atualmente, gerir a imensidão de informação pré-existente e entretanto criada sobre o património cultural, tendo em conta a rápida e intensa procura de conhecimento em que se baseia a sociedade de informação em que vivemos. Consequentemente, o museu não poderia cumprir, à luz do nosso tempo, o que é estipulado na sua definição, ou seja, “adquirir, conservar, investigar, comunicar e expor o património material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite”.
Museu Digital © Museu da Ciência da Universidade de CoimbraÉ assim que entendemos o papel da normalização na documentação em museus: um elemento essencial. Um elemento que é transversal a todo o processo de documentação, com o qual o museu e os seus profissionais devem assumir um compromisso semelhante ao assumido, respectivamente, com a sua missão e código deontológico. Um elemento que deve complementar a missão e política de gestão de coleções, desde a sua definição, passando pela sua aplicação prática através de um plano de documentação que calendarize, estabeleça objetivos e preveja as ferramentas necessárias, até, finalmente, ao processo de avaliação da documentação e gestão das coleções de cada museu. Um elemento cuja ausência acarreta consequências negativas, a nível interno e externo, para o museu, para as coleções e, acima de tudo, para o seu público.
Se assim é para os museus, assim o é também para as ferramentas informáticas de gestão de coleções. A normalização é a trave mestra, os alicerces onde devemos basear a criação de um sistema de gestão de coleções. Sem observarmos a sua criteriosa aplicação, não há sistema que resista às exigências da gestão da informação na atualidade, à crescente preocupação com a qualidade, sustentada pelos processos de creditação de museus ou, ainda, à cada vez mais necessária integração com diferentes tipos de sistemas de informação relacionados com georreferenciação, agregação de dados, gestão (cultural e económica), entre outros.
Sabemos, no entanto, que este é um trabalho difícil e dispendioso. Exige que as empresas que desenvolvem estes tipo de sistemas consigam conciliar o enorme conjunto de regras de documentação existentes para os museus, com os requisitos dos sistemas informáticos, que sofrem uma constante e acelerada evolução, envolvendo o conhecimento e investigação naquelas duas áreas, e também em áreas próximas, como a da normalização para arquivos e bibliotecas dada a existência em grande número de centros de documentação em museus com essas valências. Um trabalho que acarreta um considerável investimento, quando se quer sério e credível, mas que tem que ter em conta a endémica situação financeira dos museus de forma a poder concretizar-se.
Estando cientes que esta é uma matéria ainda difícil e, por vezes, pouco explorada pelos profissionais de museus, gostaríamos de concluir com uma reflexão de Alice Grant sobre a forma como museus, os seus profissionais e os parceiros tecnológicos devem encarar o papel das normas de documentação em museus, sobre a qual gostaríamos que todos pudessem refletir e que, na nossa opinião, define a própria essência da importante tarefa que o Grupo de Trabalho sobre Sistemas de Informação em Museus da BAD (GT-SIM) têm em mãos.
«If the importance of “a standard fit for purpose” is understood to be fundamental and that the search for “the core standard” or “the international documentation standard” is no longer appropriate, then what should museums be working towards?
Jointly and internationally, we might take a better look at what exactly we do want standards for. Rather than assuming a single international documentation standard will meet all our needs, we might choose to take a long hard look at the tools we have before us at this time and agree how best to employ them in the jobs we do.» (GRANT, 1996: 10).
Alexandre Matos
Doutorado em Museologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É diretor do departamento de Investigação e Formação da Sistemas do Futuro, coordenador do Museus Portugal e membro da direção da APOM (Associação Portuguesa de Museologia). Escreve regularmente sobre museus e museologia no blogue Mouseion (www.mouseion.pt).
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[1] Em alguns países, como Espanha e Portugal por exemplo, são também criadas normas de documentação de acervos, mas de âmbito territorial restrito, ao contrário de algumas normas de países anglo-saxónicos que se tornam verdadeiras normas internacionais.
[2] Disponível em http://cidoc-crm.org. Consultado em 07-05-2013.
[3] Disponível em http://www.collectionslink.org.uk/programmes/spectrum. Consultado em 07-05-2013.
[4] Pese embora esta falta de investimento a nível estatal gostaríamos de salientar o enorme esforço que alguns museus portugueses e brasileiros estão a fazer no projeto “Thesaurus de Instrumentos Científicos em Língua Portuguesa” disponível em http://chcul.fc.ul.pt/thesaurus/.
Bibliografia
GRANT, Alice (1996) – Museums, Information and Collaboration: Why a single standard is not enough. Study Series. CIDOC n.º 3. Paris: ICOM/CIDOC.
MARÍN TORRES, María Teresa (2002) – Historia de la documentación museológica: la gestión de la memoria artística. Madrid: Ediciones Trea, S.L.