Gaspar Matos
Fez ontem um ano que publiquei nas redes sociais uma resenha das minhas leituras de Verão, por duas razões: pelo gosto de escrever sobre o que leio e por tentar alavancar um dar e receber que tão bom seria que sucedesse com mais frequência, entre pares. Afinal, todos temos o livro como ferramenta, todos lidamos com a promoção da leitura, do conhecimento, da informação, todos cantamos loas aos benefícios da literatura como companhia nos momentos de recolhimento, como pretexto de conversa nos tempos de socialização, como estímulo intelectual, emocional, sensorial, como alavanca para o exercício esclarecido da cidadania. Lançada que foi a experiência dos grupos de leitores em Oeiras, inaugurei a formação em dinamização dos mesmos na BAD, e o módulo intitulava-se Ler e calar ou ler e partilhar? Sabendo já a resposta, mantenho-a.
Das Mágoas da escola (Daniel Pennac) às Histórias falsas (Gonçalo M. Tavares), da Confiança e medo na cidade (Zygmunt Bauman) a um Coros de defuntos (António Tavares), e terminando com um português Benigno na Grande Guerra (João Tordo), assim se fizeram estas leituras de Agosto. Faltou-me Uma outra voz (Gabriela Ruivo Trindade, Prémio Leya 2013), mas confesso que a leitura seria mais para comparação que pela obra em si: é que, após a experiência com O Pecado de Porto Negro (Norberto Morais, finalista nesse mesmo ano, do mesmo prémio), queria confirmar se era possível escrever melhor ou de modo tão tocante. Houve ainda tempos para uma vista em diagonal à Amiga Genial (Elena Ferrante), que será mais profundamente relida neste mês de Setembro (por questões profissionais, e porque vale sempre a pena revisitar esta autora).
De Gonçalo M. Tavares, vergonhosamente confesso a estreia: nunca me cativou, nem com a série O Bairro. As letras são assim mesmo, parece-me. Não é mister a obrigação, mas a tentativa. E, de tanto pingar em pedra dura, lá achei obra que me caísse no goto: Histórias falsas. São contos de pouco menos de dez páginas (somando, no total, menos de uma centena), que juntam à história da filosofia a veia criativa do autor. Utilizando personagens e enredos que nos são familiares, M. Tavares mistura realidade e ficção com inteligência, ironia e humor, para nosso divertimento e, sem dúvida, reflexão. Fica um trecho:
Muitas outras vezes na História o poder se ajoelhou perante a filosofia e a arte. Umas por sincera devoção ao Belo, outras por medo: os poetas e os filósofos têm ligações secretas com os deuses e alguns demónios – assim se dizia e diz ainda, entre os incapazes da construção de palavras e ideias.
Com a plena consciência de não me ter atirado a um título mais arrebatador do autor (Aprender a rezar na era da técnica – dizem – é uma obra-prima), fica a experiência de ter lido, gostado e de me parecer uma excelente introdução ao escritor.
Ainda no capítulo das curtas mas impactantes, um título de Zygmunt Bauman. Confiança e medo na cidade são, a exemplo da obra anterior, menos de cem páginas de filosofia que, de modo transparente e escorreito, nos explicam o porquê do medo nas nossas sociedades comprovadamente mais seguras do que nunca, e a urgência do estímulo à confiança e à convivência. Conceitos como mixofobia (receio de estar em presença de desconhecidos) e mixofilia (o oposto, ou seja, o prazer que advém da convivência com os mesmos), ideias de cidade como espaço de eleição para a relação multi e transcultural, a apologia dos espaços públicos como potenciadores da nossa civilidade, a existência do condomínio privado e do veículo SUV como criadores de uma falsa ilusão de controlo, tudo isto é mastigado e generosamente explicado por Bauman, que nunca perde a esperança na espécie humana. A ler, nestes tempos novos da Europa (com especial destaque para a última das três partes da obra, intitulada “Viver com estranhos”), e para quem se aventura pela primeira vez nos campos da sistematização da reflexão humana. A propósito da tentação securitária de padronização, que transmite uma falsa sensação de conforto e proteção, cita-se:
Quanto mais se separam as pessoas nesses bairros fechados de homens e mulheres que se parecem todos uns com os outros [a propósito de condomínios privados], menos fácil se torna para elas contactar com estranhos.
Entrando em leituras a exigirem mais fôlego, quanto mais não seja pela extensão das obras, Mágoas da escola. Muita curiosidade tinha eu em ler este testamento de Pennac, autor que guardava com especial apreço desde a leitura de Como um romance. Nesta obra, a educação, o ensino, o aluno, o professor, os pais, tudo se vê à luz do ponto de vista do calão, do cábula, daquele que não estuda, que não memoriza, que não entende, que não quer/não consegue saber e aprender. Pennac foi um desses, e lê-lo relatando esses tempos e os subsequentes (desde ter sido resgatado por três ou quatro professores até estar ele mesmo a ser confrontado com alter-egos, na condição de seu mestre) é um deleite para os olhos e para a alma: a afirmação da necessidade de uma capacidade de comunicação forte, por parte de quem ensina; o imprescindível afeto que deve ser transmitido aos alunos; o colocarmo-nos no lugar deles, hoje, em que o futuro é o de uma vida sem esperança e apenas de apelos ao consumo; o não abdicar de uma cultura de exigência e trabalho; a coragem em não deitar as culpas a tudo e a todos – nomeadamente à tão famigerada “falta de bases” com que lhe chegavam às mãos… tudo isto escrito por alguém com um saber de experiência feito, não só na qualidade de mau aluno mas igualmente de professor e pedagogo com provas dadas faz deste Mágoas da escola um livro que recomendaria a qualquer pai, a qualquer professor e que, com certeza, daria uma excelente discussão no seio de um grupo de leitores (em que alguns docentes marcassem presença). Da obra, um excerto:
Os professores que me salvaram – e que fizeram de mim um professor – não tinham recebido nenhuma formação para esse fim. Não se preocuparam com as origens da minha incapacidade escolar. Não perderam tempo a procurar as causas nem tampouco a ralhar comigo. Eram adultos confrontados com adolescentes em perigo. Pensaram que era urgente. Mergulharam de cabeça. Não me apanharam. Mergulharam de novo, dia após dia, mais e mais… Acabaram por me pescar. E muitos outros como eu. Repescaram–nos, literalmente. Devemos-lhes a vida.
Coro dos defuntos cada vez mais reforça em mim a ideia de que é a literatura – pelo menos no caso português, mas não só –, a primeira obreira da análise sociológica da história mais recente do nosso país, pelo menos de um modo que mais facilmente se apreende pelo público em geral, pois sai dos redutos escolares e académicos. Qualquer leitor que leia esta obra de António Tavares (que foi Prémio Leya 2015), lhe dê sequência com O retorno (Dulce Maria Cardoso) e que finalize com As primeiras coisas (Bruno Vieira Amaral) terá, no final e certamente, apropriado parte da história social, cultural e económica do nosso país, de 1968 a 1990.
Este Coro dos defuntos cobre o período 1968-1974, desde a queda de Salazar da cadeira até à chegada do 25 de Abril. Com uma reconhecida influência de Aquilino – o livro inclui um glossário para acompanharmos os regionalismos e outros vocábulos caídos em desuso –, o autor relata-nos a vida de uma aldeia da Beira perto de Mangualde, em paralelo com outros acontecimentos nacionais e internacionais (que, na sua maioria, ou escapam aos habitantes do lugar ou são mal interpretados). O que mais me impressionou foi o paralelismo que encontrei com a Penalva do Castelo de que me recordo, nos anos 80, o que só me veio confirmar aquilo que já tinha por certo: abril chegou em ’74 mas só nos livros de história, pelo menos para parte deste país. O desenvolvimento como o conhecemos, só em finais de 80 atinge a interioridade, para o bem de quem lá morava (e para o mal também, mas isso será um dia a história a validar… ou não).
Num desfiar de personagens, as pequenas novelas: de Manuel Rato – ex-seminarista e filósofo local – que tenta refazer a vida na América mas não aguenta as saudades da terra; da avó louca, bruxa e sábia que enterra os mortos, faz nascer os vivos e sabe os futuros antes de todos; de um regedor que é seu marido e se farta de a ir buscar à Guarda, à conta de chiliques e acessos vários; da Chichona, a prostituta aposentada que ainda desassossega a aldeia com biscates amiúde; de Júlio Peixeiro, que primeiro traz a notícia da queda do ditador; do padre, que teme pela paganização da aldeia, mandando dinamitar locais de supostos milagres; dos que dinamitam eles mesmos, dois irmãos com a capacidade de até em relação a corpos celestes fazerem previsões de quando cargas seriam precisas para os rachar de alto a baixo; da chegada da televisão à taberna e do rastreio de sinal junto ao teto, com a antena interior. Com humor mas com muito realismo, António Tavares traz-nos a ruralidade pré-revolução ilustrada a linguagem aquiliana, num retorno à aldeia que diverte mas dá que pensar: é que foi há tão pouco tempo e parece tão distante. Cita-se, da vida em comunidade:
Cada um sabia quem eram os outros e cada qual conhecia todos e, mais do que a eles, os pais e avós, às vezes os bisas e tudo assim, mesmo na linha colateral, ou seja, primos e tios e por diante. Ainda és prima do Caneco, diziam-lhe; e era, numa distância que se perdera em várias gerações de nascimentos e mortes sucessivas, mas ao vê-la passar sentiam essa ternura que habitava algures num canto da sua genealogia.
Por fim, Benigno (João Tordo), uma surpresa daquelas que nasce quando percorremos a estante de outrem e, por curiosidade, damos por nós a sacar pela lombada um entretém para um dia de praia e letras. Editado pela revista Sábado a propósito dos cem anos da Grande Guerra, o título leva-nos a um Portugal a viver uma república de meia dúzia de anos e sob uma sucessão de governos instáveis e quezilentos. Álvaro e Benigno são amigos de longa data, diferentes em tudo: o primeiro frágil, preso à família, receoso dos dias que passam e o segundo afoito, forte, aluno do Colégio Militar e a querer navegar a turbulência da atualidade. Benigno parte para Moçambique, trazendo-nos desta feita um pedaço de história pouco presente nos manuais escolares: as lutas contra os alemães pela posse dessa então colónia africana. Álvaro torna-se o intermediário de epístolas que recebe do amigo e dirigidas a Julieta (sua amada do Norte), e em que tudo se vai revelando: a indiferença do povo de Lisboa à partida da expedição; o narrar das condições paupérrimas de existência das tropas na viagem pelo Atlântico e Índico; o desnorte dos soldados mal preparados e enviados à sua sorte para uma terra desconhecida. O desfecho surge à conta de uma última carta, que coloca Álvaro numa situação difícil face à namorada do amigo, mas que revela Benigno como um homem de extremos: ou a guerra, ou o amor. Um excerto:
A infantaria é uma argamassa de soldados mal treinados, (…) alguns deles têm dois meses de recruta e nenhuma experiência militar, (…), há artilheiros que desconhecem as armas que trazem… (…) Os portugueses tinham estado a disparar uns contra os outros. Desconhecendo as manobras do outro regimento, ambos os lados se convenceram de que os alemães disparavam contra eles.
E foram estas as minhas leituras de Verão, que convosco partilho. Assim queiram alguns fazer o mesmo e talvez se reúna massa q.b. para umas fornadas de sessões de grupos de leitores, ou para acudir a um utilizador das nossas bibliotecas, em busca de outras leituras. Bom regresso ao trabalho, a todos!