Entrevista Jose Antonio Calixto

A sexta entrevista em vídeo, no contexto da Comissão Técnica Profissão, a associados aposentados que se destacaram na profissão, e que estiveram indelevelmente ligados à origem e desenvolvimento da BAD, contou com o testemunho do bibliotecário José António Calixto, que nasceu em 1952.

Nesta entrevista, efetuada em 12 de maio, o nosso entrevistado começou por nos apresentar os primeiros contactos com o fascinante mundo dos livros, numa pequena e bonita aldeia do Ribatejo, chamada Arripiado, no município da Chamusca, quando na infância a sua mãe “desde sempre, desde que eu sabia olhar para os bonecos, trazia-me os Mandrake e os Tintim, e os livros de aventuras, e depois passou a trazer-me Os Cinco e Os Sete”, salientando que “eu devo muito à minha mãe o facto de ter ganho o gosto pela leitura”.

Do início da sua atividade profissional, como responsável pela Biblioteca da Escola Secundária da Camarinha em Setúbal, entre 1987 e 1989, começa por recordar o convite que fez a Maria Luísa Cabral, na esfera do curso de alunos que organizou, para dar formação, que descreve como “muito bom, foi ótimo”. Desta fase destaca “o primeiro e, acho que último, concurso – isto é tudo antes da Rede de Bibliotecas Escolares, devo dizer -, portanto, houve um concurso lançado, era então ministro o doutor Roberto Carneiro e, se não me engano, ganhámos 5.000 escudos, o que foi uma mão cheia de dinheiro”, enfatizando que “foi um tempo muito bom, heroico, posso dizer, onde eu dei os meus primeiros passos sozinho, também na construção de uma biblioteca, comprar mobiliário, o mobiliário passou a ser o adequado e não o que tínhamos, que era fechado, apesar da escola ser relativamente nova e ter um espaço muito aceitável para a altura, mas os armários estavam fechados à chave e os livros iam atrás das dessas redes e nós acabámos com isso e pusemos, o primeiro passo foi tirar as portas desses armários, aí começou o acesso as livros”.

José António Calixto faz-nos uma retrospetiva dos anos seguintes do seu percurso no domínio dos Serviços de Biblioteca e Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Setúbal (CMS). Depois de, entre 1990 e 1993, ser bibliotecário (Técnico Superior de Biblioteca e Documentação), na CMS, nos dois anos seguintes (1993-1995) é coordenador dos respetivos Serviços de Biblioteca e Arquivo Histórico (funções que voltará a desempenhar entre 2001 e 2003), e, entre 1995 e 1997 é Chefe da Divisão de Bibliotecas, Arquivo e Educação. Este trajeto conheceu uma pausa, entre esse ano e 2001, em que foi bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), como estudante de Doutoramento na Universidade de Sheffield, em Inglaterra, que “era, na altura, para muitos portugueses, um farol”. Desta fase, em que refere “aprendi muito”, destaca o papel determinante de Robert Charroux para essa opção, em detrimento da Universidade de Birmingham, de quem traduziu para português a sua obra “Biblioteca Pública como conhecimento público”. Da Universidade de Sheffield, que classifica como “uma oportunidade rara, apenas possível, como enaltece, pelo financiamento da FCT, e à sua primeira orientadora em Portugal, a Professora Joaquina Barroso, assevera, “fiquei surpreendido com a maior parte das coisas que vi. A primeira reação é surpresa (…) é toda a situação de ter um lugar na biblioteca, um lugar para trabalhar, com computador à minha disposição, ligado à Internet, que na altura dava os primeiros passos, ainda não era o que é hoje, muito longe disso, mas foi um período de intensa aprendizagem, quer nas aulas, quer fora delas (…) tínhamos livre acesso ao nosso local de trabalho as 24 horas por dia”.

No seguimento da reconstituição da sua história de excelência, José António Calixto aborda a Biblioteca Pública de Évora, de que foi o diretor entre 2003 e 2013. Nesse sentido, declara que “Évora é outra coisa! Eu não sei se aprendi mais em Évora, se em Sheffield! Para dar uma ideia (…) quando lá cheguei o depósito legal era aberto no hall de entrada Biblioteca e era colocado, transportado, e era colocado em ceiras, daquelas ceiras, não eram caixotes, eram daquelas coisas de ir à praça, mas em grande. Era uma situação que havia também casas de banho (…) em que não se conseguia entrar porque a porta estava atravancada com livros (…) porque não havia espaço (…) era uma situação muito antiga. (…) o estado da Biblioteca era este.” Deste período de 10 anos, José António Calixto destaca “a sorte (…)  em ter encontrado uma grande diretora-geral, a Professora Paula Mourão, a quem devo muito”, mas também à Câmara Municipal e à Fundação Calouste Gulbenkian, salientando que “nós criámos, pela primeira vez, o empréstimo domiciliário (…) nós começámos a emprestar os livros, de depósito legal, da Biblioteca Pública de Évora (…) As pessoas nem queriam acreditar e estavam, de facto, muito contentes”. De igual modo, sobressai neste decénio “a mudança e a transformação da Hemeroteca (…), e ainda uma outra coisa importante que nós procurávamos fazer foi manter uma grande ligação com as escolas (…), e uma grande ligação com a comunidade”, entre inúmeras iniciativas, com os mais diversos parceiros e entidades, concluindo, “foi uma paixão muito grande”.

De seguida, o nosso entrevistado fala-nos da oportunidade que recebeu, “uma coisa espantosa”, entre 8 e 29 de junho de 2006, de visitar bibliotecas dos Estados Unidos da América, a convite do governo deste país, integrado no International Visitor Leadership Program of the United States Department of State. Desse modo, conheceu a Biblioteca do Congresso, em Washington e a Biblioteca Pública de Nova Iorque, tendo igualmente visitado diferentes tipologias de bibliotecas, arquivos e museus em Chicago e no estado de Oregon. Teve, igualmente, a possibilidade de participar no Congresso anual da American Library Association em Nova Orleães. A propósito das dúvidas que sentiu em aceitar este convite, refere “consultei o meu oráculo preferido, Maria José Moura.”

No que concerne à questão sobre a valorização do bibliotecário, no final dos anos 80, José António Calixto indica que “é um bocado difícil responder a essa pergunta”, já que “nós tínhamos tudo para se ter uma boa imagem junto da comunidade, uma vez que tínhamos uma formação superior (…), contudo a imagem do bibliotecário não era propriamente positiva”, de tal forma que o tentaram dissuadir de enveredar por este trabalho. Para resumir, “não era uma profissão valorizada, a imagem que tinha não era das melhores”.

No tocante à sua ligação à Associação, de que é associado desde 24 de fevereiro de 1988, com o número 1201, afirma “eu fiz-me sócio da BAD antes de ser bibliotecário” (…), para mim era uma coisa natural”, ressaltando a sua relação com esta, em que foi, e continua a ser, membro do júri do “Prémio Raul Proença”, edições anuais desde 2010, instituído pela BAD, com o apoio da DGLAB, integrou os órgãos sociais (Mesa da Assembleia-Geral) da BAD para o triénio 2011-2013, e foi responsável pela área editorial e de comunicação, e, nesta condição, diretor do jornal Notícia BAD e editor da revista Cadernos BAD”.

A respeito de Maria José Moura, de que é um dos autores do livro de homenagem, publicado pela BAD, em 2022, diz-nos que “era uma pessoa que marcou as bibliotecas e marcou a vida de muita gente e, indubitavelmente, marcou a minha (…) era uma pessoa amiga dos amigos (…) que tinha um poder de argumentação extraordinária, que discutia connosco. A verdade é que (…) nós chamávamos-lhe a Madrinha das Bibliotecas, mas eu acho que era mais do que madrinha, era mãe, era pai das bibliotecas portuguesas. Não há homenagem suficiente que se lhe possa fazer (…) um prémio com o nome dela é mais do que merecido, sem dúvida (…) o que não seria das bibliotecas portuguesas se não fosse a Dra. Maria José Moura? Ela foi sábia o suficiente para nunca ter querido passar da posição de diretor-geral, tenho a certeza de que ela poderia ter feito uma carreira política, mas nunca o quis fazer porque achou sempre que, como diretora-geral, tinha, porque poderia ser mais influente e acompanhar mais de perto, acho que é prova de uma grande inteligência dela. Isso leva a que ela tenha (…) passado por vários Governos, tenha tidos vários ministros da Cultura, que conheça todos, alguns dos quais tinham medo dela, aliás, porque quando ela metia alguma coisa na cabeça era difícil dizer-lhe que não (…) era uma pessoa conhecida internacionalmente, tirando o nome daquele futebolista famoso, o Ronaldo ou o Eusébio, um desses, poucas outras personalidades portuguesas terão criado uma imagem tão positiva de Portugal e os portugueses, como a Maria José Moura, ela ganhou um prémio internacional mais do que merecido (…) era uma amiga, uma encorajadora, uma pessoa muito positiva, que foi pena ter-nos deixado, mas ela ficou e vive no coração de muitas pessoas”.

A Liberpolis – Associação para o Desenvolvimento e Promoção das Bibliotecas Públicas da Área Metropolitana de Lisboa, que fundou, não foi esquecida, destacando que “foi uma outra coisa em que aprendi muito, de que gostei muito (…) não era uma associação de bibliotecários, não era uma associação profissional, nunca quisemos que fosse (…) no fim, aquilo que nós queríamos realmente ser era um grupo de lobby”.

Da sua prolífica obra, absolutamente notável, com dezenas de artigos publicados em revistas especializadas, atas de congressos e encontros científicos, para além de ter sido editor de outros títulos, destaca “A Biblioteca Escolar e a Sociedade da Informação”, publicado pela Caminho, em 1996, um livro “que sei, teve impacto (…) porque durante muitos anos muita gente me perguntou por ele e sei que ele era bibliografia mais ou menos obrigatória nos cursos de formação de professores e nos mestrados que entretanto surgiram, em Biblioteconomia Escolar (…), por isso, quando se trata de escolher um livro, eu não tenho muitas dificuldades em pôr esse livro à cabeça”.

Logo a seguir, José António Calixto deu-nos conta da sua participação em diversas iniciativas de investigação: desenvolveu, de 1994 a 1996 o projeto de intercâmbio “Rede Cultural de Bibliotecas Europeias”, financiado pela DGX da Comunidade Europeia, no âmbito do Programa Caleidoscópio, no qual a Biblioteca Pública Municipal de Setúbal foi parceira das bibliotecas do Condado de Mayo (Irlanda), do Condado de Clwyd (País de Gales) e da Comuna de Parma (Itália); foi membro do Órgão Coordenador do projecto PLAIL (Public Libraries and Adult Independent Learners), financiado pela DGXIII da Comunidade Europeia (fevereiro de 1994 a fevereiro de 1996), e do Órgão Coordenador do projecto LISTED (Libraries Integrated System for Telematics-based Education), financiado pela DGXIII da Comunidade Europeia (1997-1999).

Após o seu envolvimento nestes projetos internacionais, José António Calixto descreve a participação, a convite do então ministro da cultura, no grupo de trabalho que em 1996 concebeu e produziu as bases para o lançamento da Rede de Bibliotecas Escolares. O seu impressionante percurso docente, efetuado em paralelo com a atividade como bibliotecário, foi abordado nesta entrevista, especificamente como professor convidado, lecionando as seguintes disciplinas: Leitura Pública no Curso de Especialização em Ciências Documentais (1994-2011), na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Fontes e Pesquisa de Informação e Gestão de Coleções, no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa; Biblioteca Pública e Sociedade da Informação, Gestão de Coleções e Pesquisa de Informação e Serviço de Referência, e ainda o Seminário de Métodos Qualitativos, no Curso de Pós-Graduação e Mestrado em Bibliotecas, Arquivos e Ciência da Informação; e Métodos Qualitativos em Ciência da Informação, Bibliotecas Escolares e Pesquisa de Informação e Serviço de Referência, na Universidade de Évora, como Professor Auxiliar Convidado. A esta experiência docente juntou-se a orientação de dissertações de mestrado e teses de doutoramento e membro do júri em provas desses graus de ensino. Do seu trajeto como professor releva, “a experiência é riquíssima, posso dizer que uma das grandes vantagens de dar aulas é porque se aprende muito, quem dá aulas tem de estar a par das coisas, tem de ler, tem que atualizar-se, aprende-se muito, também, com os alunos, sobretudo com os alunos de mestrado e doutoramento”.

O entrevistado referiu-se em seguida à atribuição do público louvor da Câmara Municipal de Setúbal, “pela dedicação e empenho demonstrados no exercício das suas funções ao serviço da Autarquia”, em 15 de setembro de 1997, e ao louvor da diretora do Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, Professora Doutora Miriam Halpern Pereira, “pela competência e dedicação com que tem exercido as funções de diretor da Biblioteca Pública de Évora”, em 4 de março de 2004, referindo que “uma pessoa gosta sempre de ver o seu trabalho reconhecido, obviamente, eu penso, de qualquer modo, que tenho de começar a acrescentar a esta lista uma outra coisa, é que, digo isto aqui em primeira mão, penso que não é segredo, fui nomeado sócio honorário da BAD (…) que para mim representa muito como distinção de vida e eu orgulho-me muito disso”.

A entrevista aproximava-se do fim, mas ainda houve tempo para ouvir José António Calixto acerca de quais pensa terem sido os grandes desafios e oportunidades que as bibliotecas, e os seus profissionais, tiveram de enfrentar neste período tão singular e esgotante, entre meados de março de 2020, até bem recentemente, devido ao novo coronavírus (SARS-CoV 2) e à COVID-19.

A derradeira questão colocada ao nosso entrevistado teve que ver com o futuro das bibliotecas em Portugal, que conselhos gostaria de deixar a quem pretenda iniciar-se nesta profissão e, finalmente, os grandes riscos, desafios e oportunidades para os seus profissionais.

Em resumo, uma verdadeira lição de dedicação às bibliotecas, e aos respetivos documentos, feita de legitimidade e dedicação inexcedível, que nos estimula e com a qual muito aprendemos, pela heurística feliz às questões complexas e difíceis que o mundo das bibliotecas coloca.

Paulo Batista
Comissão Técnica Profissão / Conselho Nacional 2021/23

https://noticia.bad.pt/etiquetas/profissao/

Similar Posts