Entrevista Madalena Garcia NB

A sétima entrevista em vídeo, da iniciativa da Comissão Técnica Profissão, a associados aposentados que se destacaram na profissão e que estiveram na origem e desenvolvimento da BAD, contou com o testemunho da arquivista Madalena Garcia, que nasceu em 1947.

Nesta entrevista, realizada em 18 de maio, Madalena Garcia começa por fazer uma retrospetiva do seu percurso profissional, mormente da sua “ligação aos arquivos, uma ligação interrupta de quase 40 anos (…) feita predominantemente a grandes instituições patrimoniais, como a Torre do Tombo e a Biblioteca Nacional, Divisão de Reservados, e o Arquivo Salazar, que esteve em depósito na Biblioteca Nacional (…) com exceção do período em que exerci as funções de Diretora de Serviço de Arquivística na Direção Geral de Arquivos, ex-Instituto Português de Arquivos, portanto, tenho uma ligação de trabalho de acervos documentais”.

Sobre o seu primeiro contacto com o mundo dos arquivos refere que “o início foi o estágio que fiz na Torre do Tombo [encontrava-se em São Bento], quando acabei o Curso de Bibliotecário-Arquivista em Coimbra (…) e estive um ano a trabalhar sob orientação da Dra. Maria José Silva Leal, uma arquivista eminente, que se destacou em várias áreas.”

Findo esse estágio, concorre, com sucesso, em 1981, ao lugar de bibliotecário-arquivista na Biblioteca Nacional, onde vai organizar, inventariar e descrever o Arquivo Oliveira Salazar, que, por coincidência, tinha acabado de ingressar na BN nesse ano, “enquanto não fossem concluídos os trabalhos no edifício da Torre do Tombo e preparando para ser disponibilizado à consulta, decorridos os 25 anos após a morte de Oliveira Salazar.” A nossa entrevistada recorda que “foi o diretor da Biblioteca Nacional, era o Dr. João Palma Ferreira, que me deu essa incumbência e foi uma responsabilidade tremenda, pela minha falta de experiência, pelo que o arquivo representava, porventura o mais importante arquivo para a história do século XX português, de político, sem dúvida, de pessoa que tenha exercido funções políticas, sem dúvida, o mais importante. Foi uma responsabilidade enorme. E havia também um aspeto que me limitava, é que o arquivo estava sob sigilo, portanto, eu não podia levar ao arquivo colegas, com quem trocasse impressões, que me esclarecessem sobre aspetos técnicos (…) Foi um trabalho em que o apoio das instituições estrangeiras e dos arquivistas que a BAD trouxe cá, foi muito importante para eu sentir, do ponto de vista metodológico, segurança no tratamento daquela documentação, daquela responsabilidade (…) Foi um choque emocional enorme, foi uma coisa que, por outro lado, era um desafio imenso, e eu queria, tecnicamente, poder saber o que era feito noutros contextos e poder concretizar o trabalho, poder não dececionar e corresponder, ter um instrumento de descrição que pudesse auxiliar os investigadores quando aquele prazo fosse atingido.” Referindo-se ao apoio que teve de colegas estrangeiros, desta Bruno Delmas, Professor Titular de Arquivística Contemporânea, da École Nationale des Chartes, em Paris, os ingleses Michael Cook e Steve Henson, e os arquivistas espanhóis Vicenta Cortés Alonso, Antónia Heredia Herrera e Pedro López,“e cá em Lisboa, o Dr. Mário Alberto Nunes Costa, o primeiro arquivista português a compreender a importância do Schellenberg na descrição arquivística e a privilegiar a série documental como unidade básica fundamental no trabalho de inventariação.”

De seguida, Madalena Garcia faz-nos viajar ao início dos anos 80, em que que, juntamente com Luísa Almeida e Sousa, Margarida Ortigão Ramos e Mário Gouveia, constituiu na BAD o Grupo de Arquivos, tendo sido responsáveis pelo primeiro inquérito aos arquivos municipais de todo o país, “um trabalho feito (…) com completa carolice (…) para poder dinamizar na BAD o Grupo de Arquivos”.

Prosseguindo a retrospetiva do seu passado profissional, a nossa entrevistada relembra o convite do Professor Doutor José Mattoso para integrar a Comissão para a Reforma e Reestruturação do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em 1987. No ano seguinte deixa a Biblioteca Nacional, para ingressar, como Diretora de Serviços de Arquivística, no Instituto Português de Arquivos (IPA), a convite do respetivo Presidente, o Professor Doutor José Mattoso, funções em que se manteve até 1992. No IPA coordenou uma equipa de recéns arquivistas, com vinte e poucos anos, formados em Ciências Documentais, onde se encontravam, entre outros, Ana Franqueira, João Vieira, Luís Montalvão, etc., “gente extraordinária e foi uma experiência única, de interesse que as pessoas tinham, a liderança do Professor Mattoso, o entusiasmo das pessoas, enfim, foi um trabalho muito interessante, muito emocionante, aliás, o Professor Mattoso escreveu uns anos mais tarde que a década de 80 constituiu para os arquivos portugueses um dos raros momentos da sua história.”

Recuperando a importância da vinda de eminentes arquivistas europeus a Portugal, destaca Michael Cook e a sua obra magna, Manual of Archival Description, publicada em 1986, decisivo para o desenvolvimento do ARQBASE, de que foi coautora, juntamente com Ana Franqueira e Rafael António. Do ARQBASE afirma, “foi um projeto do IPA que visava o tratamento automatizado de documentação histórica (…) a palavra ARQBASE surgiu de uma conversa do Rafael António e minha. Havia a PORBASE e nós resolvemos fazer o ARQBASE, e depois a Ana Franqueira, quando acabou as Ciências Documentais fez um estágio na Biblioteca Nacional, na parte da Divisão de Reservados e, portanto, nós os três desenvolvemos este trabalho que era baseado nos ensinamentos do Michael Cook, a descrição multinível, o que era, à época, uma inovação e, portanto, aproveitámos também o primeiro software da Biblioteca Nacional, o software disponibilizado pela UNESCO, o Mini-micro CDS/ISIS. O Rafael António e a Ana Franqueira fizeram a parte informática, nós fizemos a parte dos manuais e assim foi. Esse trabalho foi reconhecido pelo Conselho Internacional de Arquivos” (…) O ARQBASE teve também uma importância muito grande na época na aproximação, na cooperação com os países de língua oficial portuguesa.”

Segue-se a análise, no mesmo período, entre 1988 e 1992, em que foi responsável pelo Projeto da UNESCO do Guia de Fontes para a História das Nações, responsabilidade que voltará a desempenhar entre 1996 e 1998.

Em 1991 finaliza o tratamento documental do Arquivo Oliveira Salazar, cujo inventário é publicado no ano seguinte pela Editorial Estampa. Madalena Garcia foi a primeira pessoa a trabalhar os arquivos de Salazar, pouco mais de 10 anos desde a morte desta figura incontornável da história contemporânea de Portugal. Ao longo de nove anos transcreveu os 72 cadernos diários onde António de Oliveira Salazar anotou o seu dia-a-dia durante 35 anos, que correspondem a aproximadamente 13 mil dias e cerca de 6500 páginas de texto. Sobre este trabalho monumental trabalho salienta que “já estava aposentada em casa, tinha disponibilidade de tempo, tinha conhecimento da letra do Salazar e achei que era um serviço que prestaria aos historiadores fazer esse trabalho. Trata-se de uma fonte histórica fundamental para compreender o funcionamento daqueles 35 anos, os diários começam em [19]33 até [19]68 e isso é uma sequência ininterrupta, factual e de todo o tipo, que era uma fonte preciosíssima (…) Não sabia exatamente o tempo, sabia que levava muito tempo, mas eu tinha os diários digitalizados e pontualmente ia à Torre do Tombo ver o original, dúvidas que tinha (…) foi um trabalho solitário, completamente solitário.”

Da forte relação com a BAD, num período que atravessa várias décadas, em que se destaca a vice-presidência da Associação, entre 1992 e 1994, tendo organizado o 1º Fórum dos Arquivistas Lusófonos, que decorreu em simultâneo ao 5º Congresso da BAD, enfatiza que “foi muito mais importante o que eu recebi do que eu dei à BAD.” Nesse sentido, salienta o papel decisivo de Maria José Moura na sua formação e percurso como arquivista, mas também em muitos outros profissionais desta área, devendo-se à sua ação a vinda a Portugal dos supramencionados arquivistas europeus. De Maria José Moura, associada e profissional de excelência, que esteve presente na vida da Associação de forma muito marcante, declara “era, aquilo que eu digo, uma força da natureza que nos contaminava pela confiança que nos dava e energia que nos transmitia, foi extraordinariamente importante na nossa formação e a visão que ela tinha de saber, descobrir essas pessoas que nós não conhecíamos, esses arquivistas tão eminentes, mas ela tinha os seus contactos (…) aproveitando as reuniões da IFLA, presumo eu, para poder informar-se também da parte dos arquivos, ela trazia cá gente dos arquivos, trouxe cá todas essas pessoas que eram importantes no contexto do quadro do Conselho Internacional de Arquivos, eram pessoas marcantes”.

Retomando o seu percurso profissional, em 1996, com a nomeação do Professor Doutor José Mattoso como Diretor do Instituto dos Arquivos Nacionais /Torre do Tombo, Madalena Garcia é convidada para Diretora do Gabinete de Estudos e Planejamento. Dois anos mais tarde, em 1998, é nomeada Subdiretora do Instituto dos Arquivos Nacionais /Torre do Tombo, funções em que se manteve até 2001. Deste período alude que “a nossa preocupação foi proceder a uma renovação geracional do corpo técnico e alterar, inovar a metodologia arquivística. O Professor José Mattoso procurou definir logo a elaboração do Guia Geral de Fundos da Torre do Tombo como uma prioridade”, destacando o papel primordial de Maria do Carmo Dias Farinha, cuja coordenação permitiu concretizar esse trabalho hercúleo. Falando da atualidade, enfatiza que “hoje em dia há uma nova geração da Torre do Tombo que é de gente muitíssimo competente (…) o António Frazão, a Ana Maria Rodrigues, a Joana Braga, a Lucília Runa, o Paulo Tremoceiro, o Pedro Penteado, a Ana Lopes, a Fátima Ó Ramos, enfim, é gente extraordinária, portanto, eu acredito que no futuro a Torre está bem entregue ao corpo técnico que tem.”

Madalena Garcia tem uma prolífica e extraordinária obra publicada, no âmbito dos arquivos e do património arquivístico, entre os quais: Arquivo Salazar. Inventário e Índices. Lisboa: Estampa, 1992; Alguns problemas dos arquivos de titulares de cargos políticos. Lisboa: BAD, 1992; Os documentos pessoais no espaço público. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998; Arquivos privados: salvaguarda e acesso. Lisboa: BN, 2004. Publicou, no mesmo âmbito, em coautoria: ARQBASE. Metodologia de Descrição para Tratamento Automatizado de Documentação Histórica. Lisboa: IPA, 1991; Dicionário de Terminologia Arquivística. Lisboa: IBL, 1993; Guia Preliminar dos Fundos de Arquivo da Biblioteca Nacional. Lisboa: IBL, 1994; Inventário do Arquivo Histórico da Biblioteca Nacional. Lisboa: IBL, 1996; Guia Geral dos Fundos da Torre do Tombo: Instituições Contemporâneas. Lisboa: IAN/TT, 2004. Em resposta ao desafio de destacar as obras que publicou, indica o Inventário do Arquivo Histórico da Biblioteca Nacional: 1796-1950  “um trabalho que eu fiz com a Lígia Martins e nesse trabalho há uma subsecção que é particularmente importante, que diz respeito à Comissão Administrativa dos Depósitos das Livrarias dos Extintos Conventos”, a que junta o Dicionário de Terminologia Arquivística, que efetuou com Ivone Alves, Margarida Maria Ortigão Ramos, Maira Olinda Alves Pereira, Maria Paula Lomelino e Paulo Coelho Nascimento.

Na reconstituição do seu notável trajeto profissional, Madalena Garcia acentua que, em paralelo com esta, a partir dos anos 80 lecionou no Curso de Especialização em Ciências Documentais da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, da Universidade Católica e da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, para além de ser responsável pelas cadeiras de Arquivística na Universidade dos Açores e de Informática para Arquivos na Universidade de Coimbra. Desta etapa da sua vida, em jeito de balanço, declara que esta experiência “foi importante, foi uma atividade exercida pontualmente, foi importante porque foi também um desafio para poder estudar muito nas áreas, em determinados aspetos dos arquivos.”

Sobre ter sido agraciada com o Grau de Comendador da Ordem do Infante Dom Henrique, em 1993, pelo Presidente da República, Dr. Mário Soares, sobretudo na sequência do extraordinário trabalho que produziu, durante 8 anos, na Biblioteca Nacional, no âmbito do Arquivo Oliveira Salazar, menciona, “foi uma satisfação enorme pelo reconhecimento público da dignidade do trabalho arquivístico.”

Esta entrevista finaliza com Madalena Garcia a dar-nos conta dos grandes riscos, desafios e oportunidades com que os arquivistas se deparam na atualidade, deixando conselhos a quem pretenda trabalhar nesta profissão.

Em resumo, uma entrevista inesquecível, de grande “envergadura de asa”, espelho de uma diversidade oceânica, refletindo a sua ligação a grandes instituições patrimoniais, a que não se consegue ficar indiferente.

Paulo Batista
Comissão Técnica Profissão / Conselho Nacional 2021/23

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