Para memória futura, resolvi aceitar as muitas sugestões para aqui evocar sucessivos episódios – alguns pitorescos, outros traumáticos, outros ainda quase inacreditáveis à luz da bitola ou das realidades dos dias de hoje – de um percurso forçosamente pessoal, os quais irei mesmo numerar para tentar ser sintética, e não me alongar demasiado. Será uma escrita despretensiosa, em modo coloquial, esperando porém que possa interessar os colegas e eventualmente outros leitores.
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Nascida e criada na belíssima cidade de Évora, pela qual continuo a sentir grande apego e orgulho, com os meus 6 anos fui logo para a escola pública (S. Mamede), sabendo já muito bem ler e escrever, o que se revelou importante para a leitora compulsiva em que me tornei… Passei depois para o Liceu, instalado no maravilhoso edifício da antiga Universidade dos Jesuítas, mais tarde recuperada para idênticas funções, e onde tive o enorme privilégio de ter Vergílio Ferreira como professor. Leitora diária da sua encantatória Biblioteca Pública, frequentava-a até no período noturno, que havia na altura e me permitia devorar todos os autores, mesmo os que talvez nem sempre entendesse devidamente! Seria já um destino à vista?
Mas fiz tese em História de Arte, tentada também pela Museologia, naquele ambiente desafiante e propício… Como esse curso fechara entretanto, decidi-me pelo de Bibliotecário-Arquivista, só existente na Universidade de Coimbra, mas que se mantinha com um plano de estudos de 1935! Éramos apenas 5, naquelas penosas deslocações semanais, e que nem sequer pelo serviço me estavam autorizadas… Felizmente aí encontrei o meu grande mestre, Jorge Peixoto, que tudo me ensinou, quando depois trabalhámos vários anos numa pequena Comissão de Bibliotecas Universitárias (só 4 bibliotecários que correspondiam às Academias então existentes), ideia do Ministro Veiga Simão que as tomava tão a sério, por considerá-las o verdadeiro coração de qualquer universidade, talvez porque se doutorara em Inglaterra.
Estudámos bastante as questões do ratio professores/alunos, atentos à bibliografia para as distintas faculdades, preparámos o curso de técnico auxiliar de bibliotecas, iniciado pela então comissão organizadora da BAD logo em 1972 (tendo nós próprios testado leccionar o 1º em Moçambique, na sua Universidade ) e também, logo em 1973 um plano de estudos, a instituir nas universidades para técnicos superiores das nossas áreas, o que mais tarde se revelou muito difícil e demorado, pela incompreensão das autoridades no Ministério da Educação. Para o conseguir depois abrir na Faculdade de Letras de Lisboa, valeu-nos o bom entendimento com Barata Moura e os parcos recursos financeiros que obstinadamente para ele consegui fazer transferir do organismo responsável pelo Património Cultural, através de um protocolo. Curiosamente, o 1º a ser lecionado fora porém na Universidade dos Açores, antes mesmo dos de Lisboa, Coimbra e Porto, já aliás obsoletos depois de tanta demora nas Secretarias…
Mas trabalhámos muito, em horas extraordinárias sem remuneração, cheios de entusiasmo e ilusões. Em 1973 fomos participar no Congresso da IFLA, em Grenoble, para mim o 1º de muitos outros ao longo de tantos anos. Dela guardo desde há décadas excelentes relações com inúmeros colegas e grandes amigos de todos os continentes e latitudes. Fiquei a dever-lhes, por certo, a proposta que lideraram para que me fosse concedido o Prémio Internacional do Livro, em 1998, que em anos anteriores fora dado a Vaclaw Vavel, Leopold Senghor, outros escritores, bibliotecários, ilustradores, etc.
Exerci a profissão quase 20 anos na Universidade de Lisboa, cheguei a ser convidada para directora da Biblioteca Nacional e, até antes, para vir a assumir o lugar de Directora dos Serviços de Documentação, recém-criado na Universidade Nova de Lisboa. Nenhum deles porém me seduziu, além de pensar não ter eu então experiência suficiente… Já não resisti ao desafio para coordenar e dirigir o prometedor Projecto das Bibliotecas Municipais, onde inicialmente tive que trabalhar só a tempo parcial, sendo embora já há anos Directora de Serviços. Por mal dos meus pecados, também simultaneamente fui Coordenadora-geral do Inventário Cultural Móvel, enquanto desempenhava várias outras funções, o que talvez ainda aqui vá abordar. A minha mãe dizia que eu tinha sorte, mas sou dos que pensam que a sorte dá também muito trabalho! Porém, não aceitei nunca a equiparação a Subdirectora-geral, tentando manter certa autonomia de pensamento e acção, que sempre prezei.
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Já era também presidente da BAD quando fui nomeada para esse ambicioso Programa, que ainda hoje muitos consideram o mais importante do Portugal democrático na área da Cultura. Teve uma insuspeitada adesão do poder local (54 contratos-programa logo no 1º ano, o que alguns acharam uma estratégia algo imprudente, mas assim se garantiu a sua continuidade!). 10 anos depois infelizmente não foi porém aceite a inflexão que já então se impunha, como o Eloy poderá também corroborar!
Já antes tinha perdido outras ilusões… E só a título de exemplo, no início de Abril de 1974 lembro-me que estava eu em Londres, no University College, tentando negociar – por determinação de Veiga Simão, que para tal tinha mandado reservar algumas bolsas do Instituto de Alta Cultura – a ida de alguns colegas para obter a indispensável formação e depois mesmo o doutoramento (PhD). A minha tarefa era muito complicada, mas ficou no ar a hipótese de lá aceitarem 3… Só que no regresso a Lisboa, ninguém estava disponível! Depois, foi preciso esperar mais 10 anos, porque se perdera a oportunidade e a Revolução dos Cravos tinha outras prioridades…Mas talvez esta estória explique a grande alegria que tive quando o Calixto se doutorou em Inglaterra numa das suas melhores Universidades e foi pouco depois para director da minha inesquecível Biblioteca Pública de Évora. Em anos mais recentes, foram muitos os que seguiram esse exemplo, que eu sempre tentei estimular
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Tenho aqui que recordar a propósito o indiscutível e decisivo empenhamento que a BAD sempre desenvolveu em todas as questões relacionadas com a formação na sua área, pois para além das verdadeiras batalhas que teve que travar para a criação, acompanhamento constante e leccionação dos Cursos de Especialização em Ciências Documentais, durante muitos anos – na ausência de interesse das entidades oficiais às quais deveria competir essa função – encarregou-se de formar mais de 3 milhares de Técnicos Profissionais, até que esses cursos deixaram de ser reconhecidos (e desapareceram depois, apesar da enorme falta que fazem nas mais diferentes instituições).
A BAD, não sendo obviamente uma escola, não se escusou nunca a assumir essa tão grande responsabilidade, quando se devia sobretudo dedicar à também importante tarefa de planear e organizar acções de actualização e aprofundamento de conhecimentos dos profissionais, seus associados ou não. Da inconcebível situação que depois sobreveio, provocada sobretudo pelo desaparecimento das carreiras, de que hoje estamos a sofrer, nem vale a pena falar aqui. Lembro apenas, voltando à formação, o que já dizia o nosso grande Raúl Proença: “… não haverá profissão bibliotecária em Portugal enquanto as diferentes bibliotecas do país…não exigirem aos seus funcionários um diploma de estudos bibliotecários”.