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| Notícia BAD

Num país onde as bibliotecas escolares eram raras e mal apetrechadas até ao final dos anos 90 do passado século, as novas bibliotecas municipais têm sido um incentivo ao sistema educativo. A Rede de Bibliotecas Escolares (RBE) através do Ministério da Educação tem vindo nos últimos anos junto dos municípios a estabelecer protocolos no sentido de estes, através das suas bibliotecas municipais, garantirem apoio (técnico e financeiro) às bibliotecas escolares dos respectivos municípios.

Deste modo, as bibliotecas escolares, sobretudo do 1º ciclo (mas não só), têm vindo a receber um apoio decisivo das bibliotecas municipais. Este apoio, num número crescente de bibliotecas municipais, tem dado origem ao chamado Serviço de Apoio às Bibliotecas Escolares (SABE). De entre as muitas funções que têm sido atribuídas ao SABE destacam-se as seguintes: apoiar as bibliotecas escolares, estimulando a sua criação onde não existam ou acompanhando o desenvolvimento das existentes; promover a articulação das bibliotecas escolares com as outras bibliotecas do concelho, procurando formas de cooperação e rentabilização de recursos; fornecer recursos físicos e de informação às bibliotecas escolares, nomeadamente às escolas de menor dimensão, e apoiar projectos específicos; prestar colaboração técnica às escolas no domínio da organização, gestão e funcionamento das bibliotecas escolares; participar na formação contínua dos profissionais envolvidos no serviço de bibliotecas escolares; apoiar o uso eficaz dos recursos, através do aconselhamento na selecção dos recursos ou no desenvolvimento do serviço de biblioteca, etc.

Acontece que estes novos serviços de apoio às bibliotecas escolares têm tido, no entanto, um efeito perverso no funcionamento das bibliotecas públicas municipais. Por exemplo, no reforço junto da população e dos autarcas do papel educativo da biblioteca pública, criando nestes a ideia que as bibliotecas municipais devem apoiar sobretudo os estudantes, mas também na sobrecarga de trabalho dos já reduzidos recursos humanos existentes nestas bibliotecas, que poderiam ser canalizados para garantir serviços/actividades junto de outros sectores da comunidade que são, normalmente, preteridos face às inúmeras solicitações escolares aqui apontadas.

Com efeito, a RBE soube tirar partido desta situação. O que foi possível graças a uma rede bem montada, centralizada num Gabinete responsável pela execução do programa e numa equipa multidisciplinar de coordenadores interconcelhios. Acresce a isto uma eficiente gestão da informação entre os parceiros, que se traduziu na promoção da RBE, na mobilização das autarquias e respectivas bibliotecas municipais, na produção de recomendações e directrizes (para as bibliotecas escolares), em apoio financeiro (também para as bibliotecas escolares) e num Plano Nacional de Leitura articulado com as necessidades das escolas. Tudo condições necessárias para o sucesso da criação e funcionamento de uma rede. Condições que a Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLB) foi perdendo ou nunca chegou a desenvolver. Ou seja, lentamente as bibliotecas municipais foram ficando presas nesta estratégia da aranha, de uma aranha inteligente, meticulosa e determinada. Ou para utilizar outra metáfora elucidativa, foram sendo vampirizadas em prol de objectivos que não são os seus.

Por outro lado, a fragilidade e isolamento profissional de muitos bibliotecários municipais, que não souberam, quiseram ou puderam resistir e questionar esta apropriação paraescolar da biblioteca municipal (que já vinha de trás, e da qual nunca se conseguiram libertar), associada à fragilidade financeira, política e técnica da DGLB, incapaz de impor uma concepção clara e pragmática do que é e para que serve uma biblioteca pública, fizeram o resto. A somar a isto, ainda tivemos que conviver com uma Associação de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD) autista que só agora, à beira da ruptura financeira, se começa a abrir ao debate e a renovar.

Pergunta-se, então, deverão as bibliotecas municipais assistir passivamente à sua progressiva escolarização, deixando de fora a maior parte da população? Numa altura em que através do “Programa da Rede de Bibliotecas Escolares” se conseguiu dotar uma grande parte das escolas com bibliotecas modernas esta situação parece não se ter alterado. Os estudantes são quem mais frequentam as bibliotecas públicas e sua utilização é marcadamente instrumental, dizem os estudos e confirma quem está no terreno.

De facto, a escolarização tomou conta de parte dos serviços e actividades das bibliotecas municipais que se vêem actualmente confrontadas com as solicitações permanentes das bibliotecas escolares. Exceptuando o público escolar (alunos e professores), os estudos (é o caso da “Leitura em Portugal” coordenado por Maria de Lourdes Lima dos Santos) apontam que grande parte dos activos (aproximadamente 88%) não frequenta estes equipamentos. Presume-se, por isso, que grande parte dos adultos não se revê nem encontra nas bibliotecas municipais portuguesas resposta às suas necessidades de informação.

Mais há mais problemas. A maioria das bibliotecas municipais orienta os seus serviços para actividades meramente recreativas, seja através da animação da leitura como a inevitável hora do conto seja através de eventos culturais, mais ou menos elitistas, como as palestras e encontros com escritores e outros intelectuais. Mas também temos, neste afã lúdico, os escaparates das bibliotecas invadidos por literatura light, livros de auto-ajuda, best-sellers inclassificáveis e um sem número de outros documentos de qualidade duvidosa mas de grande popularidade. O que importa é ler, ler, ler dizem os senhores do Plano Nacional de Leitura. Mesmo quando essa leitura não dá as competências necessárias para ler o mundo, porque ao poder não parece interessar criar e formar leitores críticos e autónomos. Aqueles que seriam necessários para o desenvolvimento do país.

Não se trata de arranjar bodes expiatórios mas de definir e separar as águas. A César o que é de César… As bibliotecas municipais portuguesas têm de encontrar rapidamente a sua vantagem competitiva, já que as escolares e universitárias têm há muito o seu nicho de mercado definido e garantido. O que significa assumir os erros e recentrar a sua acção na comunidade, e não apenas numa pequena fatia da população…

Sem dúvida que uma análise macro impõe-se, até porque para um modelo de rede de bibliotecas funcionar, ele tem de ter políticas nacionais e recursos de sustentação. Tem, evidentemente, de interagir com outras redes e parceiros, mas tem também, e sobretudo, fundamentar-se em directrizes e standards internacionais, o que significa, como já referi, ter uma concepção clara e pragmática do que é e para que serve uma biblioteca pública.

As bibliotecas municipais não terão viabilidade, como efectivamente têm algumas das suas congéneres estrangeiras, se tanto a nível nacional como a nível das autarquias e dos bibliotecários que nelas trabalham, não houver sustentação política e técnica consubstanciada em: leis; financiamento; coordenação e assistência da parte da DGLB; formação e desenvolvimento profissional de qualidade; estudos, estatísticas, indicadores de medida e resultados para que se possa avaliar o que foi feito, o que se está a fazer e o que se pretende atingir; projectos de promoção da leitura com evidências tangíveis dos resultados; novas estratégias de comunicação, que não passem apenas pela escola, mas que se dirijam a outros públicos sem interesse pelos livros, mas com necessidades de informação; criação e dinamização de serviços de apoio ao cidadão e à cultura local, como o serviço de informação à comunidade ou o fundo local; criação de serviços bibliotecários de qualidade apoiados na internet e capazes de tirar partido das novas ferramentas da chamada web social.

Interessa, portanto, pensar sobre este modelo de biblioteca pública em que o papel educativo, na sua vertente escolar, predominou, em detrimento de outros bem mais estimulantes e necessários, como o papel cultural, informativo, social ou mesmo político. Mas interessa também reflectir no modo como a Rede Nacional de Bibliotecas Públicas (RNBP) foi concebida, gerida e implementada no terreno nestes últimos 25 anos. Mas como reconhecer e avaliar as fraquezas (e forças) de uma rede na ausência de estudos e estatísticas capazes de avaliar o que já foi feito. O último e único estudo que conheço é o “Relatório sobre as Bibliotecas Públicas em Portugal” de 1996, o qual apontava caminhos claros e ambiciosos, mas já anunciava inúmeros problemas que nunca foram solucionados. Vale a pena reler o documento.

Com efeito, nestas duas últimas décadas construíram-se muitas e magníficas bibliotecas municipais em Portugal. Investiram-se milhões na construção destes equipamentos, investimento em muitos casos mais no “betão” no que nas colecções, nos serviços ou nas equipas. Claro que isto representou uma profunda ruptura com o passado das bibliotecas públicas em Portugal, que era desolador e terceiro-mundista. Todavia, é chegado o tempo de avaliar o impacto destes equipamentos junto das populações, de estabelecer indicadores de medida, de determinar a sua frequência, os serviços que prestam, quem os utiliza, etc.

Por último, receio bem que a população em geral não reconheça grande utilidade às bibliotecas públicas. E sabem porquê? Porque, insistimos em não assumir a nossa verdadeira função social que não é apenas promover a leitura, mas trabalhar com a informação, levá-la àqueles que dela precisam. Conseguir através dela permitir que a população conheça os seus direitos, saiba reivindicá-los e possua uma consciência social e política. A verdadeira promoção da leitura é aquela que é capaz de formar cidadãos críticos, autónomos e mobilizados. O debate está aberto!

Sérgio Mangas

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