Albergar sob um mesmo teto a heterogeneidade dos recursos da memória e do conhecimento, arquétipo para que a biblioteca de Alexandria nos remete, recorda-me o passado comum que museus, bibliotecas e arquivos tiveram e da relação de intrínseca inter-documentação estabelecida entre os bens que acumulava e possuía. Porém, a taxonomização dos saberes em prol de novos métodos de investigação e construção do conhecimento promoveu a cartesiana especialização de organismos guardadores da memória instituindo paradigmas tutelares/curatoriais dos bens segundo o seu formato físico e conteúdo: os objectos tridimensionais com valor patrimonial pertenciam aos museus, os livros às bibliotecas, e os manuscritos e documentos originais aos arquivos.
Vem isto a propósito da constatação com que, quotidianamente, eu e muitos profissionais de museus convivemos perante uma estratigrafia de paradoxos que inibem os museus de, sistemicamente, serem organismos produtores de conhecimentos (ou, pelo menos, de mais conhecimento): frequentemente os museus comportam na sua estrutura orgânica a existência de um arquivo e de uma biblioteca. No primeiro acumulam-se todos os documentos que testemunham a vida da instituição, a segunda constitui-se como sistema de informação auxiliar do trabalho de investigação e estudo dos seus profissionais. Apesar de serem a memória de organismos que preservam a memória coletiva, nem sempre estes departamentos são reconhecidos (ou são reconhecidos insuficientemente) nas dotações financeiras e nos quadros de pessoal afeto, e os bens que os integram raramente dispõem de sistemas de catalogação e inventariação informatizados (por vezes nem em papel) nem utilizam linguagens documentais normalizadas [1] que permitam a recuperação da informação e o seu cruzamento com outros sistemas de inventariação de bens. Na maior parte dos museus, a documentação (aqui entendida como os documentos em suporte papel), por si, não é tida como prioridade variando o investimento no seu tratamento de acordo com os interesses profissionais e institucionais resultando que o seu contributo para a documentação das coleções é, geralmente, muito desigual e raramente integrada num sistema completo e normalizado e, também muito raramente, tida em conta na informação que o museu divulga e disponibiliza.
Complexificando o panorama, e o paradoxo, verifico que não é inédita a incorporação de bens nos museus (por vezes sob a forma de espólios e/ou legados, nas modalidades de aquisição e/ou doação) caracterizados pela diversidade de forma, suporte e proveniência sem que tal processo seja incompatível legalmente com o que se espera seja o acervo dos museus (a lei-quadro dos museus – Lei n.º47/2004, de 19 de Agosto – não impõe limites tipológicos às incorporações) nem o que os museus querem que seja o seu acervo e que traduzem nas políticas de incorporação e nas missões que os próprios museus se autoinstituem.
Não obstante esta liberdade de incorporação (que não é recente, entenda-se, já que com isso poderia querer ilustrar-se uma abertura a novos tipos de património e de bens nos museus), há distintas práticas de tratamento dos bens: sem surpresa, quando se trata de bens que pertencem à categoria dos objectos tridimensionais integram o inventário do acervo; mas quando se trata de outro tipo de bens (imagens fotográficas, livros, documentação diversa, partituras) permanecem numa situação de não tratamento ou integram categorias especiais que os dissociam do conjunto dos bens e os ostraciza em listas, dossiers e/ou bases de dados à parte.
Exemplifico com duas ações de incorporação levadas a efeito no museu onde trabalho e que suscitaram (e continuam a suscitar) dúvidas quanto à forma de tratamentos a dispensar a cada um dos “documentos”:
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Nos anos 70 do século XX foi incorporado por doação o espólio de um maestro e musicólogo que integrava instrumentos musicais, peças de mobiliário, bens pessoais como óculos, batutas, condecorações, além de correspondência, partituras, programas e cartazes, fotografias e publicações diversas, rascunhos e cadernos de notas. O conjunto foi objeto de um processo de identificação e classificação de espécies no final dos anos 80 e os documentos em suporte papel foram organizados em grandes categorias (correspondência, partituras manuscritas…) mas não foram incorporados em nenhum sistema de classificação e/ou de inventariação. Os objectos tridimensionais foram integrados no sistema de inventariação informático do acervo. Não existe modalidade integrada de recuperação de informação relativa aos bens arquivístico e/ou bibliográficos.
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Em 1988 é incorporado por doação o espólio de um etnomusicólogo composto por notas de campo, correspondência, rascunhos diversos, recortes, fotografias, discos e matrizes, equipamento eletrónico de captação e reprodução de som e instrumentos musicais. Em 2003/4 foi objeto de um processo de identificação de espécies, classificação e inventariação parcial. Então, para os documentos em suporte papel e película, discos e equipamentos diversos foi adotado um sistema de classificação e marcação próprio que não corresponde a nenhum outro utilizado no museu. Paralelamente, os instrumentos musicais foram introduzidos no sistema de inventariação informático do museu. Não há qualquer modalidade de recuperação da informação contida no sistema de classificação próprio a não ser através da consulta de listagens impressas.
Perante as situações descritas verifico que a informação disponível está limitada e reduzida à sua condição singular, em vez de amplificada e exponenciada pela informação de cada um somada à informação resultante das interações de todos com todos e incompatibilizada com as necessidades informacionais dos diferentes utilizadores internos e/ou externos.
Embora haja nos museus documentos capazes de proporcionar uma informação global preenchida com contributos de diferentes suportes, o menor investimento no tratamento de certos tipos de bens e a ausência de interoperabilidade entre sistemas de documentação impede a concretização da vocação dos museus como grandes sistemas de informação, onde todos os seus recursos (documentos ou, como lhes chama David Levy, talking things) estariam disponíveis e recuperáveis através de um sistema de documentação normalizado das coleções independentemente do seu suporte, formato ou proveniência.
O paradoxo final tem a ver com as práticas do fazer museológico e que exemplifico com a rede de museus a que pertenço. Adotado, em 1998, um sistema informático (Programa Doc-Base Museus) constituído por três bases de dados (MUSA para a descrição de coleções museológicas, IMAGEM para a descrição de imagens, e ISBD para a gestão de documentação bibliográfica e a possibilidade de abertura de um campo para materiais de arquivo) progressivamente a alimentação dessas bases vai sendo reduzida à base MUSA e a nesga de possibilidade de interoperabilidade anterior abandonada. Os bens marginais, difíceis diria, regressam à modalidade de tratamento individualizado, à parte, e esta situação entristece e faz lembrar um regresso à atomização dos saberes e das formações académicas tradicionais: eu sou conservadora de museus, e não sei nada de arquivística ou de biblioteconomia…
Será que com a otimização de meios existentes, pelo menos, com o investimento num hibridismo formativo e dos perfis profissionais, e alguma visão estratégica interna não podemos inverter a situação?
Maria Manuel Velasquez Ribeiro
Assessora do Museu de Angra do Heroísmo
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[1] No âmbito da sua dissertação de mestrado Maria João Santos procedeu a um inquérito de avaliação da documentação enquanto processo nos museus portugueses. Relativamente ao controlo de terminologias os resultados obtidos indicam a inexistência de normalização, sobretudo no que se refere às linguagens documentais, designadamente, thesaurus, indexação e recuperação de informação (SANTOS, 2005: 172-173)
Bibliografia
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GONÇALVES, Maria Cristina Macedo. 2004. Documentação das coleções etnográficas dos Museus da Rede Regional dos Açores in Atlântida, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, Vol. XLIX
SANTOS, Maria João. 2005. Radiografia documental dos museus portugueses: inquérito de avaliação da documentação enquanto processo. Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Dissertação de mestrado
SILVA, Armando B. Malheiro da. 2002. “Arquivística, biblioteconomia e museologia. Do empirismo patrimonialista ao paradigma imergente da ciência da informação”. In Separata dos Trabalhos de Antropologia e Etnologia. Porto, Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia
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