Ana Margarida Dias da Silva (*)
A Venerável Ordem Terceira da Penitência de S. Francisco, fundada a 5 de Janeiro de 1659 no convento de S. Francisco da Ponte, em Coimbra, é desde 1837 proprietária da igreja e edifício do Carmo, extinto colégio Carmelita, hoje Património UNESCO da Humanidade.
Por ocasião do seu 350º aniversário, entendeu o Conselho da V. Ordem Terceira de Coimbra, iniciar o tratamento do seu arquivo em 2010. A atribuição de um subsídio por parte da Fundação Calouste Gulbenkian no âmbito do “Concurso de Recuperação, Tratamento e Organização de acervos documentais”, a que a Ordem submeteu um projeto que foi aprovado em julho de 2012, contribuiu decisivamente para dar um outro impulso a este trabalho.
O inventário realizado encontra-se disponível para consulta no repositório da Universidade Católica Portuguesa, constituindo o n.º 2 da coleção “Instrumentos de Descrição Documental” do Centro de Estudos de História Religiosa.
O tratamento deste Sistema de Informação veio permitir, entre outros, a identificação e a contextualização do património artístico e arquitectónico de que a V. Ordem Terceira de S. Francisco é responsável e pelo qual é responsabilizada. Vejamos alguns exemplos.
Ao nível da arquitectura clarificou-se o porquê da denominação de “S. Jacinto” numa das alas do edifício. Em 1908, D. Maria José Augusta Barata da Silva (cujo retrato existe na instituição) resolveu dotar o Hospital da Ordem Terceira de uma enfermaria destinada a tratar irmãos tuberculosos, isto por que seu filho, Jacinto Adelino Barata da Silva, morrera ainda jovem com a dita doença. Lê-se em acta de 8 de Julho do mesmo ano que o definitório autorizou a obra e determinou que a enfermaria se chamasse de S. Jacinto, em memória do malogrado Jacinto Adelino Barata da Silva. Fica-se também a saber que a obra, realizada a expensas da benemérita senhora, se realizou na “casa da livraria”, a antiga biblioteca dos frades carmelitas.
A documentação faz ainda referência à proposta do irmão definidor Manuel Pires, a fim de solicitar à Misericórdia de Coimbra a cedência gratuita dos azulejos que adornaram as paredes da capela da Rua do Visconde da Luz, pertencente à mesma Misericórdia, entretanto demolida para se proceder ao restauro da igreja de S. Tiago, a fim de serem aplicados nas enfermarias do Hospital da Ordem (acta da Sessão do Definitório de 11 de Fevereiro de 1909, liv. E11, fl. 27). Ou a nota de que na manhã do dia 12 de junho de 1903 caíra um raio no tímpano da frontaria do edifício do hospital partindo a estátua da Caridade e fazendo estragos no emadeiramento e no estuque (em sessão de 10 de setembro de 1903, liv. E9, fl.33v.).
Nos inventários de bens móveis colhem-se informações sobre os retratos dos ministros e benfeitores do Hospital (autoria e data), do mobiliário ou dos livros da biblioteca, por exemplo.
Outras fontes documentais, nem sempre as mais óbvias, revelaram-se de suma importância para a identificação de peças de arte ou, pelo menos, enquadraram-nas no seu contexto de produção, dando-lhes vida e uma história.
No antigo refeitório do edifício do Carmo, hoje transformado em salão e espaço “museológico”, encontra-se um quadro de autoria de Pascoal Parente (pintor italiano). Obra identificada e datada, é certo, mas com a informação do arquivo ficou-se a saber um pouco mais. Na série Processos de inquirição e pedidos de admissão de irmãos localizou-se o seu processo, com data de 1791. Lê-se no documento: “Diz Pascoal Parente natural da Corte de Nápoles que ele foi rogado pelo reverendo secretário desta Venerável Ordem para fazer um painel de S. Francisco a receber as chagas para o retábulo da Casa do Despacho com a promessa de que esta Ilustre Mesa o havia de admitir por irmão gratuitamente … e dispensado da inquirição de genere…”. No livro de despesas de 1791 encontra-se o registo da compra de duas varas de pano para a realização deste painel por 800 réis (liv.G8, fl.198v.)
Entre a documentação económica, localizou-se, em documento avulso, a conta da despesa e recibo de quatro imagens (S. Francisco, S. Lúcio, Santa Bona e cadeira e estrado destas imagens, e Santa Rosa de Viterbo) que foram feitas em Lisboa por Manuel Dias, em 1748, e que importaram 188.350 réis. Só este recibo dá logo nota da autoria, data e local de quatro esculturas ainda hoje existentes na Ordem.
São muitas as peças de arte (pintura, escultura, azulejaria, mobiliário, tapeçaria) que a Venerável Ordem Terceira conserva e o sonho de musealizar o espaço tem já 20 anos! No entanto, enquanto não se torna realidade, recorre-se ao Sistema de Informação de Arquivo, aos seus documentos, à memória escrita que perdura no tempo, para as identificar, descrever, datar e atribuir uma autoria.
* Mestre em Ciências da Informação e da Documentação, área de especialização em Arquivística, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É desde 2010 responsável pelo arquivo da Venerável Ordem Terceira da Penitência de S. Francisco de Coimbra.