Não precisamos sequer de um par de anos de vida para percebermos que uma boa história começa sempre no tempo e no lugar do “Era uma vez”. Depois, quando estudamos gramática e começamos a pensar um pouco mais nas palavras, percebemos que “Era uma vez” não existe. Porque se se passou uma só vez é porque “Foi uma vez”. Mas isso é só um detalhe se comparado com a curiosidade despertada por esta fórmula quase mágica que faz com que todos os acontecimentos, dali em diante, nos afastem de quem nos conta a história ou do livro que seguramos na mão, e nos levem para longe, longe.
É que quando mergulhamos numa história, numa paisagem ou na cabeça de outros, esquecemos as palavras e a gramática para nos deixarmos levar para mundos feitos à medida de sonhos, de medos, de incertezas, de desejos, de explicações sobre as causas das coisas. Nem damos conta de que aquilo de que são feitas as histórias que vivem dentro dos livros, dentro da imaginação, guardada na memória das páginas ou do saber de cor, são exatamente as mesmas palavras que nos servem todos os dias para levarmos as nossas vidinhas. Como também não nos damos logo conta de que essa combinação de palavras cresce para a combinação de episódios, de imagens, de diálogos, de explicações, de perguntas e respostas, e que muitos destes se reencontram e se repetem em sequências que, ainda assim, fruto da arte de quem as conta, fazem de cada texto um exemplar único.
Quando nos levam ao lugar dos livros em que podemos pegar-lhes, escolher um – ou mais –, levá-lo para casa, usá-lo, e depois ir lá trocá-lo por outro, e mais outro, e mais outro, numa sucessão de paixões mais ou menos intensas, percebemos que aquele padrão de cores que forra as estantes de uma biblioteca – que é o lugar onde tudo isto é possível – se transforma numa espécie de mapa do mundo das histórias que nos contam desde que temos, às vezes nem sequer, um par de anos de vida.
É que não podemos viajar e dar a volta ao mundo só por olharmos para o planisfério, mas podemos preparar a viagem. E se o mapa-múndi for bem contado, ao detalhe, podemos reconhecer os lugares que afirmam entre si distâncias, que partilham mares, que se separam por cordilheiras ou se tocam pelos desertos. E se conhecermos as histórias que vivem dentro dos livros, as tais que repetem, refazem, recontam, redizem as palavras de há séculos e séculos, de outros lugares, enfim do tempo e do país do “Era uma vez”, vamos certamente encontrar nos lugares que percorreremos ao longo da nossa vida, dessa que começou mesmo quando nos começaram a contar o que são as vidas, essas outras vidas que aprendemos como se vivem, como se salvam, como se entregam, como se partilham e, claro, como acabam.
Se pacientemente, e não sem algum esforço entenda-se, formos folheando e lendo os livros que ordenadamente os bibliotecários dispõem ao compor esse mapa do mundo das histórias, podemos ganhar a nossa viagem ao mundo da imaginação, do passado, do que podia acontecer aqui ou ali, antes, agora ou depois. E quanto mais cedo essa viagem pelo mapa começar, mais depressa se torna seguro o passo de quem sai do mapa para calcorrear o chão que fica à sua frente.
Cláudia Sousa Pereira
Universidade de Évora