Muitas discussões tiveram lugar recentemente, em especial nas redes sociais, na sequência da Conferência sobre o “Lugar da Cultura”, promovida pelo secretário de Estado da Cultura. Questões foram e continuam a ser levantadas sobre os papéis das bibliotecas públicas na sociedade contemporânea, parecendo mesmo haver um questionamento sobre a necessidade de uma Rede Nacional de Bibliotecas Públicas. Com estes temas como pretexto, o “Notícia BAD” entrevistou Maria José Moura, inegavelmente a figura central das bibliotecas públicas portuguesas dos últimos trinta anos. As suas palavras aqui ficam. Sem rodeios nem papas na língua.
É inquestionavelmente a pessoa mais marcante no campo das bibliotecas públicas em Portugal. Foi uma das pioneiras, autora dos relatórios de 1986 e 1996, para além de ter sido a coordenadora da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas ao longo de vinte anos, desde o seu planeamento até quase há oito, quando se retirou. Sei que não é fácil responder em poucas palavras, mas a minha primeira pergunta é a seguinte: passadas quase três dezenas de anos do início deste programa, qual é o balanço que dele faz?
Tendo eu sempre afirmado que o seu maior ou menor êxito se deve não a mim mas a muitas pessoas individuais e coletivas, de que sou o rosto mais visível – disse-o em 1998, quando em Amsterdão tive de agradecer quando, por esse motivo e por proposta da própria IFLA me foi entregue o Prémio Internacional do Livro, a que, por feliz acaso, se seguiu um mês depois (e fazendo esquecer aquele muito naturalmente) a incomparável alegria do Nobel a Saramago – não devo usar de falsa modéstia, podendo até lembrar ainda que, a propósito da viragem do século, na revista Visão o programa foi considerado um grande sucesso entre a meia dúzia de coisas em que “Portugal deu certo”… Não foi uma avaliação de bibliotecários, que seriam suspeitos, e julgo que atesta bem a importância e a projeção nacional do Programa, considerado internacionalmente como exemplar, atendendo ao grau zero de que nós tínhamos partido. Devo recordar que as poucas dezenas de BM existentes em 1986, eram quase todas de dimensões mínimas, obsoletas e sem capacidade de evolução para a modernidade.
Antes da generalização da Internet e do advento das TIC, a vida em sociedade era muito diferente, sobretudo em Portugal, a sofrer o obscurantismo de cinco dezenas de anos. E ainda então, com uma elevada taxa de analfabetismo, já estávamos imersos na sociedade da imagem e do audiovisual! À luz desta vertiginosa evolução e dos desenvolvimentos dos nossos dias é hoje fácil criticar o que foi possível fazer com os parcos recursos disponíveis para corresponder às imensas necessidades de um país arcaico, mas aspirando ao modelo de bem-estar que víamos na Europa e aos novos direitos de uma cidadania reconquistada a duras penas. Erros? Por certo vários – só não erra quem nada faz – mas mais fáceis de vislumbrar com os olhos de hoje, isso é bem claro!
Seria até possível ter-se feito, como então era uso e para mera demonstração, uma só biblioteca pública, com todas as maiores “novidades”, nela esgotando as verbas alocadas ao projeto. Mas propusemos e planeámos algo muito diferente e ambicioso, procurando encontrar os melhores aliados no Poder Local que se afirmava. Sem qualquer hipótese viável nem tempo para aprovar a legislação que já então pretendíamos (e que ainda hoje nos foge…), recorremos aos princípios preconizados pela UNESCO, e através de contratos-programa foi possível gastar até ao último dia de 1987 forçosamente, a parca verba vinda do PIDDAC, numa verdadeira correria pelo interior esquecido para assinar contratos-programa, e assim recomeçar nos anos seguintes, com um grande apoio dos autarcas, algo admirados ou inseguros com os novos conceitos que preconizávamos (livre acesso a livros e mais documentos recentes, emprestados para casa, pessoal qualificado para gerir amplos e bonitos equipamentos culturais que, se respeitassem os parâmetros, recebiam a rigorosa comparticipação de 50%), os quais se respeitavam pela primeira vez, com o objetivo bem claro de inclusão e de construir cidadania!
Passados os últimos 10 anos de apagada e vil tristeza, o que resta desse sonho que tantos de nós vivemos? É preciso juntar de novo todas as nossas forças e não desistir da luta que já vimos que ninguém irá travar por nós, em defesa de uma política pública fundamental e que acreditamos determinante para o futuro do País.
José Manuel Cortês, o atual diretor da entidade que coordena a Rede, a Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), apresentou recentemente, na Conferência sobre “O Lugar da Cultura”, resultados do trabalho desenvolvido que não são propriamente animadores. Que comentário faria a estes dados e à sua divulgação?
Desde logo me pareceu um erro estratégico a forma descontextualizada que esta assumiu e, quanto aos dados, será obrigatório tecer mais algumas considerações, em benefício pelo menos de quem não tenha ainda entendido em que mundo vivemos e nos pretenda atirar com esses números que levem os nossos políticos a poupar algumas verbas hoje, em troco da infeliz ignorância em que nos irão mergulhar no futuro. Mas talvez disso iremos falar ainda…
Na mesma Conferência, ouvimos também quem teorizasse sobre o atual desenvolvimento da rede, propondo aquilo que alguns viram que conduziria na prática à sua extinção. Como interpretou essas palavras?
Por mim, não costumo dar grande atenção a quem fala do que visivelmente desconhece, não tem qualquer experiência prática do sector ou discute sequer a produção teórica já a todos acessível. Respeito sim opiniões devidamente informadas, mesmo que contrárias às minhas… Mas estes tempos são perigosos e há que estar bem alerta: é muito mais fácil destruir do que construir ou consolidar! E muitas vezes, por preconceito ou interesses malsãos, como se diz popularmente, “deita-se fora o menino com a água do banho”.
Nos últimos tempos têm circulado rumores de que o secretário de Estado da Cultura teria intenção de retirar da DGLAB as funções herdadas da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLB), dividindo-as pela Dircção-Geral das Artes e pela Biblioteca Nacional. Como veria estas alterações? Que impacto acha que elas poderiam ter nas bibliotecas públicas portuguesas?
Não quero crer que se possa de novo insistir num erro que já foi cometido há bastantes anos, quase logo reconhecido como tal e por isso corrigido, visto não ser já o nosso um país do chamado terceiro mundo, onde certos modelos ainda permanecem por diversos motivos.
Tendo sido mais recentemente cometido outro erro flagrante, ao juntar numa mesma organização arquivos e bibliotecas (tentando reduzir estas à sua antiga função de carácter custodial), sob o pretexto, aliás desadequado e até falso, de seguir o modelo do outro lado da fronteira, iria agora colocar-se o acento tónico talvez nas coleções, quando a biblioteca pública dos nossos dias procura construir comunidades e servi-las cada vez melhor, em todos os aspetos e momentos da sua vida.
Talvez assim se poupassem alguns euros em certas despesas que certamente nos iriam depois sair muito mais caro, como já aqui avancei, por falta de visão e de estratégia…
Ouvimos algumas vozes sugerindo que as transformações tecnológicas tornaram obsoletas as bibliotecas públicas, e na verdade todas as bibliotecas, vaticinando que o seu fim é uma questão de tempo. Como responde a estes augúrios? Podem as bibliotecas adaptar-se a estes novos tempos?
Todas as bibliotecas, sob a responsabilidade de bons profissionais – e não de comissários políticos – aspiram e tentam já, como é seu dever e interesse, adaptar-se aos novos tempos, procurando ultrapassar dificuldades contra ventos e marés, auscultando de muitas formas as necessidades e interesses dos seus públicos, operando por vezes “milagres” com os recursos que lhes são postos à disposição, quais ilhas de refúgio numa sociedade consumista e desumanizada. Usam de criatividade ilimitada, de respeito por princípios, de inventiva e entusiasmo profissionais, que as tornam credoras da admiração dos mais atentos, pelo menos. Não podem temer o confronto com as novas e quase omnipresentes redes de informação que justamente elas estão aptas a filtrar, organizar e credibilizar – e já hoje mesmo a produzir – sobretudo quando lhes é possível utilizar as tecnologias já disponíveis. Mas são também a ágora, o “third place”, ou mais simplesmente a praça da comunidade, a que todos podem aceder, para conviver e debater ideias e problemas, livres enfim para se socializar…
Sabemos que não são tarefas fáceis e nem sempre entendidas como necessárias, pelo que por vezes levam anos a impor-se, contrariamente à vertigem da nossa atualidade. A constituição de redes de vários tipos, com novos meios e objetivos, é hoje cada vez mais indispensável, facilitando assim a cooperação: a união faz a força, e essa é uma já velha máxima!
Não queria terminar, porém, a nossa conversa, sem dar o exemplo de uma contrariedade que senti como pessoal, mas que teve graves repercussões em termos do Programa de que aqui hoje falámos. Aludiu no início ao Relatório de 1996, que teve o valioso e insuspeito contributo de individualidades com quem eu não trabalhava diretamente, e que reuni para proceder a uma avaliação que me era pedida, mas cujas observações/ recomendações não foram minimamente seguidas pelo ministro de então, que a solicitara! Para fazer face ao desenvolvimento tecnológico, que todos sempre reconhecemos como muito incipiente no projeto e até a sua maior falha apesar das várias tentativas , não foi porém acolhida a proposta de aplicar parte do envelope financeiro disponível, não já na obra de construção, equipamento, etc., mas na aquisição e desenvolvimento de tecnologia, de que as bibliotecas tanto carecem ainda hoje e que de facto facilitaria a criação ou aperfeiçoamento da rede. Sabe-se, aliás, e não só neste caso, o custo de certas decisões… ou indecisões políticas, de que depois todos vimos a sofrer irremediavelmente!