Só comecei a conviver mais estreitamente com o doutor Victor de Sá quando, em 1980, o convidei em nome da Biblioteca Pública de Braga, a proferir uma conferência sobre Manuel Monteiro, outra figura de referência do séc. XX bracarense, mas depois desse encontro uma enorme amizade uniu-nos até ao fim da sua vida.
Porém já antes o conhecia, desde os finais dos anos 60, como cidadão corajoso e interveniente – uma figura quase mítica para o jovem e inquieto estudante de Coimbra que eu era; como historiador pioneiro no estudo do Liberalismo em Portugal – período que nem sequer se abordava no meu curso de licenciatura em História na Fac. Letras de Coimbra (1967/1972); e em Braga, proprietário de uma livraria onde sabia que podia encontrar, com mil cuidados, os livros proibidos que então tanto me atraíam.
São portanto múltiplas as facetas através das quais poderia evocar o combatente pela liberdade, o cidadão activo e indomável, o intelectual probo, o professor universitário inovador e estimado ou o investigador operoso, mas irei apenas recordar alguns aspectos do seu carácter generoso e solidário, do seu amor aos livros, às bibliotecas, enfim, à cultura.
Desde muito cedo, vivendo em Braga, ainda estudante no Liceu Sá de Miranda, de cuja Academia foi presidente, em Victor de Sá (n. 1921) se manifestou, a par da incomodidade, o gosto pela leitura e pela escrita, expresso já então em artigos publicados no “Correio do Minho” a partir de 1937 e na tentativa de criação de uma biblioteca no Liceu.
Concluídos os estudos secundários, estávamos em 1942, empregou-se numa livraria (a desaparecida Gualdino, na rua do Souto), gastando quase todo o seu ordenado na compra dos livros que tanto apreciava e lhe eram necessários. Porém não lhe agradava que esses livros, comprados com sacrifício, ficassem nas estantes, parados, adormecidos, depois da minha leitura. Parecia-me egoísta que eles ali ficassem… indiferentes à curiosidade que tantos jovens, como eu no tempo de estudante, teriam em os ler. Por isso concebeu uma biblioteca original – sistema de leituras facilitadas para utilização por empréstimo via postal em qualquer ponto do país – a célebre Biblioteca Móvel que durante 8 anos desenvolveu meritória e utilíssima acção cultural, bem expressa nos 6 catálogos que publicou, e que a prepotência salazarista obrigou a encerrar em 1950. Nessa altura publicou os seus primeiros livros, de entre os quais se destaca uma “Bibliografia Queirosiana”(1945).
Dentro da mesma ideia de combater o imobilismo e o obscurantismo cultural, publica em 1956 uma obra intitulada “As bibliotecas, o público e a cultura”, resultado de um inquérito inicialmente e em parte publicado no “Correio do Minho” que teve como objectivo o livro, a leitura e os leitores, sobretudo em função das bibliotecas bracarenses, mas com uma análise que atingiu dimensão nacional.
Trabalho original e denunciador, dá-nos um singular e único retrato cultural de uma época, sendo uma obra essencial para a realização de qualquer estudo sobre a sociologia da leitura em Portugal, cujas propostas e desafios que desenvolveu em inúmeros escritos publicados em jornais e em revistas culturais, só a partir de 1986 tiveram resposta no nosso país, com a criação da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas.
Durante todos aqueles anos, além de ter fundado a Livraria Victor, que também teve uma actividade editorial arrojada, a sua intervenção política é crescente, o que acarreta diversas prisões (7 no total) e perseguições arbitrárias, licencia-se em Ciências Histórico-Filosóficas (1959) mas é proibido de ensinar (apesar de ter sido nomeado professor da Escola Comercial de Braga, sendo-lhe de imediato negada a tomada de posse do lugar), é candidato em eleições legislativas pela Oposição e por isso mesmo julgado em Tribunal Plenário (1961).
Obteve então (1963) uma bolsa de estudo da Fundação Gulbenkian que lhe permitirá concretizar o doutoramento na Sorbonne (1969), o qual não lhe é reconhecido no nosso país, continua impedido de ser professor, sendo no mesmo ano proibido de integrar as listas da CDE candidatas às eleições para a Assembleia Nacional.
Quando se dá o 25 de Abril é apenas, profissionalmente, livreiro, mas de imediato o seu doutoramento é reconhecido, ingressando logo a seguir como professor na Faculdade de Letras do Porto (também o foi na Universidade do Minho, entre 1975 e 1977), onde teve possibilidades de se dedicar ao ensino e à investigação, publicando diversos ensaios de carácter histórico, alguns dos quais irão integrar a colecção «Obras de Victor de Sá», de que a editora Livros Horizonte deu à estampa 8 títulos.
Concilia a docência, que incidiu sobre a História Contemporânea de Portugal, com a intervenção política e em 1979, cabeça de lista por Braga, é o primeiro candidato comunista da região Norte (Porto excluído) a ser eleito para a Assembleia da República, o que se repetiria no ano seguinte.
Vítima de algumas incompreensões e injustiças (de que não se pode esquecer a inqualificável reprovação em provas académicas na sua faculdade, que considerou uma bárbara agressão intelectual e mais um acto de terrorismo de que foi vítima mais por razões de ordem política do que científicas), agudizadas pelos primeiros problemas de saúde, passa a viver em Sintra e interroga-se sobre o destino a dar a todo o espólio documental produzido e recolhido ao longo da vida (nem todos os papéis se rasgam ou se deitam fora), nomeadamente o resultante do seu trabalho de investigação ou da actividade política, e decide-se entregá-lo à guarda da Biblioteca Pública de Braga, o que se verifica em 1988.
Pouco tempo depois de ter sido agraciado, com todo o merecimento, com a Ordem da Liberdade, que recebeu em Braga em 1990, no ano seguinte propõe à Universidade do Minho, num acto de enorme generosidade e ineditismo, a criação de um prémio destinado a trabalhos de jovens investigadores sobre história contemporânea portuguesa, o que esta aceite jubilosamente, entregando a sua organização ao Conselho Cultural da U.M., que agora vai comemorar com programa bem preenchido o 20º aniversário da sua institucionalização.
Sempre interessado na problemática das bibliotecas participa, com comunicações, nos 1º e 4º Congressos Nacionais de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (Porto, 1985 e Braga, 1992).
De relevar ainda a importância que continua a atribuir aos instrumentos de pesquisa bibliográfica, tendo publicado um ”Roteiro da imprensa operária e sindical” (1991) e “O Liberalismo português: recolha bibliográfica” (1992), este com a colaboração da nossa colega Fernanda Ribeiro.
Em 1991 retoma a docência e a investigação académica, passando a integrar a Universidade Lusófona de Lisboa e de novo regressa à sua velha paixão pelos livros e sua fruição, empenhando-se na criação da biblioteca da instituição que, a partir de 1997, passará a designar-se Biblioteca Universitária Victor de Sá.
Aproveitando material do seu espólio, a Universidade do Minho, através do Conselho Cultural e da Biblioteca Pública de Braga reúne textos dispersos e inéditos de V. Sá, editando os livros “Testemunho de um tempo de mudança” (1999) e “Legendas para uma memória” (2001).
Os últimos anos da sua vida são perturbados por um estado de saúde débil, verificando-se o desenlace inevitável em 31 de Dezembro de 2003, em Braga.
Victor de Sá foi bem um homem e a sua circunstância, para quem a História e a Vida, a docência e a intervenção cívica, a investigação e o trabalho sempre se articularam dura mas harmoniosamente, constituindo um exemplo que é necessário realçar nestes tempos desencantados em que as figuras morais são cada vez mais raras.
Henrique Barreto Nunes