Maria José Moura
e
Maria Teresa Calçada
Ao ver partir um amigo, companheiro de uma bela aventura, só queremos hoje evocá-lo com as palavras simples que façam justiça à sua nobreza de carácter e a vivências comuns que, neste caso, são ainda as de um mundo alargado de colegas, protagonistas do arranque de um bonito projecto!
Seremos infelizmente já só duas – a Teresa Calçada e eu – de um pequeno grupo de 4 que, nesse quente verão de 1986, fechados no 7º andar da Av. República, elaborou o plano que previa a criação de bibliotecas municipais de leitura pública – como as designámos – para que desde logo envolvêssemos o Poder Local, que então se afirmava, em parceria com a Administração Central, que lançou o desafio e o apoiou técnica e financeiramente.
Esboçando em breves traços esse historial, havemos logo de lembrar o Seminário que Jean Tabet veio orientar em Lisboa, a convite do IPL de Alçada Baptista – para o qual a Joana Varela de imediato pediu o apoio da BAD – e que reuniu uma vintena de interessados, quase todos bibliotecários, desde o norte ao sul. Vivemos aí um intenso e dinâmico debate, de que resultou o acutilante e oportuno Manifesto de 1983, divulgado na comunicação social graças ao atento jornalista José António Salvador, que então conseguiu agitar muitas águas paradas e teve bastante repercussão ao denunciar a inexistência entre nós desses modernos equipamentos, quando já eram passados tantos anos sobre o final da ditadura.
Foi uma ideia inovadora e estimulante que mobilizou a direcção da BAD e muitos dos seus membros! Recordo sempre uma reunião na sede, fora de horas, a pedido de um político e da bibliotecária do Barreiro que queriam ajuda para planear uma nova BM, e onde acabámos por experimentar os novos conceitos, então já com o apoio do Portilheiro e do Arq. Vieira de Almeida.
Em 1986, a recém nomeada Secretária de Estado da Cultura, uma ex-colega que ainda participara em reuniões da “pró-associação”, decidiu um pouco inesperadamente propor à então Presidente da BAD que aceitasse constituir uma pequeníssima equipa para gizar em 3 meses esse plano de BM, hoje de todos conhecido.
Para conseguir cumprir tão curto prazo (não se dispunha ainda das TIC e era necessário trabalhar a tempo parcial) só podia recorrer a colegas mais próximos, com indiscutível interesse pelo tema e reconhecida competência profissional. Nessas circunstâncias, mais uma vez o Vieira de Almeida e o Portilheiro aceitaram de imediato o desafio que lhes fiz. E também no grupo, a única funcionária do IPL que para ele fora designada, Teresa Calçada, esteve depois intensamente envolvida no programa, que beneficiou muito da sua grande inteligência e dedicação, até que, passados 10 anos, ela própria foi encarregada de criar a hoje bem sucedida Rede de Bibliotecas Escolares. Esta, aliás, já no contexto do Relatório de 1986 tinha sido reconhecida como de absoluta necessidade, pois desde sempre considerei como mais ajustada ao nosso sector a que deveria ser uma abordagem sistémica.
Sobretudo para absorver já o projecto previsto no Relatório (1) de imediato aprovado, foi criado, em 1987, o Instituto Português do Livro e da Leitura. Também ao seu 1º Director-Geral essa concretização inicial muito deve, sendo hoje José Afonso Furtado uma reconhecida autoridade na área do livro e da leitura, em todos os seus suportes.
Quanto a Joaquim Portilheiro, há que lembrar ter ele sido antes coautor, com Luís Cabral e Henrique Barreto Nunes – redigindo depois este também um capítulo do Relatório de 1986 – de uma importante comunicação (2) ao 1º Congresso Nacional BAD, em 1985 no Porto.
Além de uma longa e fundamental série de acções de formação por todo o país, e de encontros, seminários e conferências, com algumas breves mas proveitosas viagens ao estrangeiro, há que recordar também a sua colaboração, tal como a de outros experientes colegas, nas 2 edições do Curso de Especialização em Ciências Documentais, na Faculdade de Letras de Lisboa, embora com financiamento do Instituto porque exclusivamente destinadas a formar técnicos para as BM, obrigatoriamente previstos em contrato-programa.
Ainda hoje, os bibliotecários assim formados mantêm um mais estreito vínculo e natural identificação entre eles.
Em todas essas múltiplas e determinantes acções, o Portilheiro se empenhou com competência, dedicação e a seriedade intelectual que nos fazem hoje recordá-lo como um grande senhor a quem muito devemos.
Mas da sua rica personalidade melhor falará aqui, já em seguida, a Teresa…
Passou muito tempo, longos anos, desde o momento em que iniciámos a aventura de fazer bibliotecas de leitura pública… um grupo de funcionários, aventureiro, destemido e brioso. Um grupo alargado de profissionais, que chamou a si a vontade e o dever de contribuir para fazer em Portugal uma rede de bibliotecas públicas, modernas e bem apetrechadas, lugar de divulgação e de livre acesso à informação e à cultura, testemunho prático da democracia.
Deste grupo fez parte Joaquim Portilheiro. Estou em crer que ele subscreveria estas palavras!
Nem sempre era assim… Ele tinha connosco muitas discussões, muitas discordâncias.
Por um lado, porque era muito teimoso e ortodoxo, por outro, porque era teoricamente mais informado e rigoroso. O seu contributo foi, em particular nos primeiros anos da criação destas bibliotecas, uma mais valia e a ele se devem estudos, memorandos e pareceres que ajudaram a desenhar estes equipamentos sociais de utilidade pública, como as suas ideias “à esquerda” impunham e gostava que fossem designados .
A sua participação foi desigual ao longo dos anos em que trabalhou na leitura pública, seja porque ele era um homem com uma vida emocional agitada e muito “anos 60”, seja porque era muito desiludido com a situação sociopolítica nacional, seja porque as ideias circundantes não mereciam de todo o seu apreço e, assim, se foi sentindo vencido.
Enquanto o grupo duro da leitura pública – os do Instituto do Livro: a Maria José Moura a chefiar, a Ana Paula Gordo, a Rosa Barreto, o José Carlos Alvarez, o Maia Amaral, o António Braga, o Manuel Queiróz, a Rosa Maria de Sousa, a Ilda e as outras assistentes, todos nós – trabalhou em conjunto, sabia que não podia prescindir dos seus conhecimentos. Talvez ele duvidasse disso, mas nós sabemos, em consciência, que era assim.
Pese embora as inúmeras dificuldades que ele nos levantava e com as quais nos exasperávamos, a sua seriedade intelectual e de formação eram o capital pessoal que lhe davam autoridade.
O grupo alargado de bibliotecários no terreno – o Henrique Barreto Nunes, a Isabel de Sousa, o Luís Cabral, o Manuel Brandão, a Francisca Trindade, a Maria João Sampaio, o Manuel Lopes e tantos outros – que tiveram um papel determinante na construção desta rede, feita em parceria com o poder central e o autárquico (veja-se a modernidade conceptual e de nomenclatura), igualmente reconhecia no Joaquim Portilheiro a autoridade.
Depois, depois havia a sua aristocracia nas atitudes, a sua boa educação, o seu sempre presente protesto e a fidelidade às leituras.
Não esquecemos a amizade!
(1) MOURA, Maria José (coord.) – Leitura pública : rede de bibliotecas municipais. Lisboa : Secretaria de Estado da Cultura, 1986
(2) NUNES, Henrique Barreto; Portilheiro, Joaquim; Cabral, Luís – Bibliotecas e leitura pública em tempo de mudança. Porto : Associação Portuguesa de Bibliotecários Arquivistas e Documentalistas, 1986. Sep. de Actas do 1º Congresso Nacional de Bibliotecários Arquivistas e Documentalistas, Porto, 19 a 21 de Junho de 1985, vol. 2