Poderia limitar-me a transcrever aqui o seguinte agradecimento que o então Presidente da República enviou à Presidente da BAD, Manuela Prates, em 7 de Julho de 1994:
“Senhora Presidente, Recebi, com muito gosto, a comunicação de que a vossa Associação decidiu em Assembleia Geral nomear-me seu Membro Honorário.
Agradeço a honra que me concederam e acompanho os vossos esforços para valorizar e modernizar as bibliotecas e os arquivos portugueses, criando condições de investigação e preservação do nosso riquíssimo património bibliográfico.”
Isso significaria, como também ouvi a Lídia Jorge, que ele se considerava um dos nossos. Eu acompanhei-o muitas vezes, sobretudo em inaugurações e visitas a bibliotecas municipais e levava o seu precioso tempo a falar-nos dos livros que sempre aproveitava logo para ali folhear (já o Presidente Sampaio, como melómano, preferia deter-se avaliando as gravações que tinham sido escolhidas…). É notório que, para além de infatigável defensor da liberdade e da democracia, como os camaradas e até os adversários de boa-fé hoje lhe reconhecem, Mário Soares fez da arte e da cultura uma bandeira e, sobretudo nos tempos que vão correndo, isso é algo que sempre teremos que recordar e agradecer-lhe, não só como cidadãos mas muito em especial como profissionais. Para cuidar e manter a sua imensa biblioteca, recrutara até uma nossa colega, o que também é bem significativo…
É certo que eu nunca tive filiação partidária – e apesar do desastre em que agora se tornou esta Europa – creio ainda hoje que Soares fez bem em colocar a sua assinatura, naquele dia 12 de Junho de há mais de 20 anos, logo por acaso no Mosteiro dos Jerónimos onde agora fizeram descansar o seu corpo. Também por acaso, nessa data precisa estava eu no sul de França, com a Sofia, o Urbano, vários outros escritores, editores, etc. a convite de J. Lang, quando os ministros também convidavam bibliotecários para os seus congressos! Mas temos que esperar melhores dias, pois ele igualmente nos ensinou que “ só é vencido quem desiste de lutar”!
Nem sempre isso é fácil, porém. A propósito, fui desafiada para vir contar – mesmo omitindo nomes, aliás naturalmente reconhecíveis – a pequena estória da abertura do Congresso da BAD de 1992, em Braga, que fora antecedido por uma verdadeira batalha, na tentativa de fundir o IPLL com a Biblioteca Nacional. Não a vencemos nessa altura e tivemos depois que esperar algum tempo para ganhar essa guerra, apesar de termos – profissionais bem organizados e aguerridos seguros da sua razão – logo procurado e conseguido importantes apoios, de que aqui quero recordar o exemplo dos então presidentes da Associação Nacional de Municípios Portugueses e da Comissão de Coordenação Regional Norte.
Como estive profundamente envolvida e tive o apoio inestimável de Mário Soares, que presidia à referida sessão, numa mesa com inúmeras personalidades nacionais e locais importantes, decidi aceitar a sugestão para dar aos mais novos uma ideia muito clara da sua inteligência, perspicácia, desassombro e sentido de justiça. Tinha-se chegado ao cúmulo de na véspera sair certa ordem de serviço, limitando eventuais discussões no Congresso “apenas a problemas técnicos”! Sendo eu Vice-Presidente do Conselho Superior de Bibliotecas, tinha entretanto sido determinado que me caberia estar presente, em representação do Governo (que claramente pretendia fugir a maiores incómodos!), tendo por isso o meu lugar à direita do Presidente. Tive de aceitar a decisão superior, mas pusera a condição de nunca abrir a boca! E aí seguiram-se, como é habitual, uma longa série de discursos, num ambiente muito tenso, dadas as circunstâncias…
Logo depois da intervenção do Henrique Barreto Nunes, secretário geral do 4º Congresso BAD, começou Mário Soares a fazer-me perguntas breves mas pertinentes, tentando perceber o que nos incomodava, quais as nossas condições de trabalho e salários, qualificações, etc. etc. Aproveitei devidamente o seu genuíno interesse e dei-lhe o maior número possível de informações, sempre em voz baixa e até por alguns rabiscos. Lembro-me bem que ficou indignado, por nos tentarem calar, e quando no final foi o momento de ele encerrar a sessão, incrivelmente foi capaz de referir, num adequado contexto, tudo o que eu naqueles escassos minutos lhe dissera ou mais o impressionara. Terminou mesmo por solicitar à nossa Associação que não demorasse a levar ao seu conhecimento o resultado dos debates que por certo iríamos ali travar sobre os problemas profissionais que justamente nos preocupavam. Tínhamos tido pois à nossa frente alguém que acreditava na liberdade de pensamento e de expressão: todos os que estiveram presentes se lembrarão de uma sala a transbordar, em que os aplausos foram enormes!
É pois a este grande homem imperfeito que hoje queremos agradecer e ainda que modestamente celebrar!