A edição em Portugal, sobretudo a dos tempos mais recentes, não tem sido objecto de grande investigação, lacuna que Nuno Medeiros vem preencher com este livro que ultrapassa o âmbito do título, transformando-se num estudo de história sócio-cultural. É evidente a preocupação do autor de constantemente contextualizar o que se passa no campo da edição, enquadrando as condições e os constrangimentos dessa actividade com a situação política, social e cultural do país.
Para além de tudo o que se relaciona com a economia do sector, constata-se que há duas condicionantes que enformam o mundo da edição em Portugal durante o período do Estado Novo: os altos níveis de iliteracia (talvez mais do que o analfabetismo) e a política repressiva de que o sector também foi vítima, mercê da actuação da PIDE, da censura e de outros mecanismos que limitavam a liberdade de expressão, falada ou escrita.
Na 1ª parte do estudo faz-se uma análise dos aspectos estruturantes da dinâmica editorial em que os 2 aspectos atrás referidos são bem evidentes, coexistindo com uma diminuta produção do livro e uma deficiente rede de distribuição, com expressivas desigualdades territoriais.
Por outro lado a inexistência de bibliotecas públicas ou municipais, ao serviço de toda a população, acentuava tal situação.
O regime salazarista mostrava-se incapaz de definir uma verdadeira política do livro e a sua actividade editorial apostava na promoção doutrinária e da ideologia dominante, nunca conseguindo aliciar um grupo coeso de intelectuais com outra visão da sociedade.
Sob vária formas e através de diversos serviços, durante o Estado Novo a censura actua implacavelmente, quer mandando apreender e destruir livros, perseguindo autores, editores e livreiros, encerrando tipografias, obrigando ao exame prévio, não escapando mesmo a esse controle repressivo e dissuasor a literatura infantil e a incipiente banda desenhada.
Para quem não aderiu aos princípios do Estado Novo, e no campo cultural muitos foram, editar era uma forma de resistência.
A actividade editorial em Portugal, até aos anos 60, ainda apresenta aspectos tipicamente artesanais e a sua associação de classe, o Grémio Nacional de Editores e Livreiros, tem uma actuação muito ambígua e cautelosa, nunca funcionando como representante dos interesses da edição perante o Estado e os seus representantes, raramente o confrontando, mesmo quando a “crise do livro” nos finais da década de 40 é indesmentível.É do circuito dos acontecimentos e dos actores na edição que se dá conta na 2ª parte, respeitando de algum modo uma sequência cronológica, de matriz histórica, da situação então vivida e dos seus reflexos no campo da edição, do qual emergem alguns protagonistas que ainda hoje são referência.
Procurando mostrar como em alguns casos foi possível aos editores manter uma autonomia relativa no seu sector de actividade, apesar da repressão censória, NM vai retratar o campo social da edição em Portugal através da reconstituição, por vezes biográfica, dos agentes individuais que marcam a actividade editorial, desde a 2ª Grande Guerra (e da “abertura” em que se acreditou) até ao dealbar da década de 70.
Distinguem-se 2 tipos de protagonistas nesta área: o editor propriamente dito, implicado na propriedade e condução dos destinos da sua casa (de que adiante falarei), e o director da colecção, responsável pela coordenação de uma colecção ou pela programação de uma dada editora, como foi o caso de B.J. Caraça e da Cosmos, o que neste e noutros casos implica uma legitimação cultural através da entrada do meio universitário no campo editorial.
Antes e durante o período da 2ª Guerra há um acentuado aumento de editoras, algumas com um papel significativo, apesar de o mercado do livro ser diminuto pelas razões já apontadas.
Mas é então que surgem a Cosmos, a Inquérito e a Seara Nova apostando na edição de obras e colecções repletas de ideias frescas e audaciosas, inovadoras, que acreditam na importância cultural do livro como arma capaz de transformar a sociedade, pesem todas as restrições e condicionalismos existentes.
Perdidas que foram as ilusões de abertura do regime com a repressão que se abateu sobre o MUD ou na sequência das eleições presidenciais de 1949, tal não impediu que novas iniciativas editoriais surgissem, apostando não só na literatura ficcional com outros horizontes, como também no ensaio, nos estudos históricos, na pedagogia e até na história da arte.
Foi o que sucedeu, p. ex., com a Livros do Brasil de Sousa Pinto, que contribuiu para a descoberta de autores brasileiros e a revelação de outras literaturas contemporâneas, para além de apostar em géneros ditos marginais, caso do policial (Vampiro) ou da ficção científica (Argonauta).
Rogério de Moura, criando a Livros Horizonte e recorrendo à comercialização através de fascículos/assinaturas (prática recorrente até aos anos 70), publica obras de referência, de arte e estudos pedagógicos e históricos, atraindo nomes com grande prestígio académico, não conotados com o regime.
Fundada em 1945 e enveredando pela edição em 49, sob a tutela de Francisco Lyon de Castro, as Publicações Europa-América emergem como uma marca de enorme importância no panorama editorial português pois empenham-se na afirmação da sua função cultural, não ignorando que havia um mercado ansioso por novos autores, novos temas, novas apostas gráficas e novas estratégias de difusão e comunicação.Sendo uma das editoras mais fortemente fustigadas pelo aparelho persecutório e repressor do Estado Novo (o livro de NM é fértil no relato de episódios ilustrativos), não é por isso que deixa de se impor no mercado livreiro nacional, mercê da coragem e da visão de F. Lyon de Castro.
Os autores que dá a conhecer, as colecções que cria mostram que delineou um projecto e um
a estratégia coerentes de intervenção cívica e cultural, no mais amplo sentido do termo, num país amordaçado, que coexiste com uma prática comercial moderna, essencial para a sobrevivência de uma empresa e dos seus trabalhadores.Contudo verificam-se algumas situações ambíguas e contraditórias, como foi o caso da Coimbra Ed., fundada por Salazar e outras figuras que lhe são próximas e que edita as suas obras, mas não se coíbe de publicar autores neo-realistas ou distribuir Torga, além de promover, como livraria, muitas vendas “por debaixo do balcão”. O autor recorda, a propósito, a existência de uma rede improvável de livrarias que, um pouco por todo o país, proporcionava o acesso ao livro proibido, o que mais tarde também viria a ocorrer com as cooperativas livreiras.
No final dos anos 60 o panorama editorial começa, lentamente a modificar-se com o aparecimento de novas empresas que agitam (inquietam?) o mercado, porque também são exemplos de cidadania, como aconteceu com a Moraes (dos católicos progressistas e de “O Tempo e o Modo”), a Portugália (com colecções emblemáticas), a Afrodite (alvo da censura por causa da literatura erótica), a D. Quixote (com os seus célebres “Cadernos” que contribuíram para a formação de uma opinião mais fundada e consistente), enquanto no Porto aparecem a Inova ( graficamente marcante e com um catálogo provocador a que a censura não deu descanso) e a Afrontamento (com incursões em áreas que perturbavam o regime).
Sendo este estudo passível de múltiplas abordagens, para mim dele sobressai indiscutivelmente a influência que a acção repressiva do Estado Novo exerceu sobre o campo editorial, o que não obsta a que o analfabetismo e a ausência de hábitos de leitura, as limitações do mercado, a sua dimensão artesanal, a personalização da gestão, para além de outros aspectos no livro abordados não tenham igualmente marcado essa actividade, por vezes heróica e aventureira.
Mas a dimensão cultural e cívica (um apostolado, como é dito no livro) que a maioria dos editores imprimiu à sua missão, com uma ética própria e um enorme capital simbólico) levam-me a parafrasear Lenine, entendendo que em Portugal, entre 1940 e 1970, “editar é lutar”.
Edição e editores: o mundo do livro em Portugal 1940-1970 / Nuno Medeiros; notas… de Diogo Ramada Curto, posf. Manuel Pereira Medeiros. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2010. 332 p.
(Esta recensão foi originalmente publicada no nº de Abril 2011 de “ Le Monde Diplomatique”)
Henrique Barreto Nunes