Luísa Nobre é, actualmente, a única pessoa no Arquivo Histórico da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP). Encarna o profissional polivalente que, simultaneamente, acumula a gestão do arquivo, da biblioteca e do museu da CVP – que constituem o Serviço Histórico-Cultural da CVP -, mas também todas as tarefas associadas. Já depois da comemoração do Dia Mundial da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, dia 8 de Maio, e no ano em que decorre o 150.º aniversário da CVP, o Notícia BAD esteve à conversa com esta profissional, que nos falou da situação actual do arquivo, dos desafios que enfrentou e enfrenta, e do espírito de uma instituição centenária como a CVP.
Criada em 1865, a CVP é uma instituição de assistência humanitária e social, em especial aos grupos mais vulneráveis, em cenários de conflitos armados e de desastres ou catástrofes naturais. Primeiro instalada na Praça do Comércio, a CVP está, desde 1950, no Palácio de Conde d’ Óbidos, às Janelas Verdes. É no sótão do Palácio que está o arquivo, cada vez mais requisitado, o que não deixa tempo a Luísa para o tratamento técnico. Porquê esta procura? Luísa coloca nos utilizadores essa resposta. “Sem o passa-palavra” deles haveria menos procura. Tem sempre uma agenda cheia de marcações feitas por investigadores particulares e académicos (mestrandos e doutorandos), entidades públicas (câmaras municipais, universidades, outros arquivos), e jornalistas e escritores que, consultando o arquivo da CVP, “defendem teses académicas, fazem reportagens jornalísticas, publicam livros e fazem exposições históricas”, comenta Luísa Nobre, com satisfação.
Nem sempre a consulta dos documentos esteve aberta ao público. Quando Luísa começou a trabalhar na CVP, em Agosto de 1988, e por muitos anos, a documentação estava num pequeno armazém da Secretaria Geral. A este organismo competia a gestão de toda a documentação da CVP. Como tantas vezes acontece, a documentação a que não eram atribuídos valor ou utilidade imediatas, ou que colidia com a gestão do espaço físico, era remetida para um espaço secundário.
A responsável pelo Serviço Histórico-Cultural até 2011, Leonor Brandão de Mello, licenciada em História e pós-graduada em Ciências Documentais, recorria frequentemente ao arquivo da instituição e ambicionava para ele outro futuro. Foi com Leonor Brandão de Mello que Luísa Nobre diz ter aprendido o que sabe sobre as áreas de que hoje é responsável. À falta de formação em Ciências Documentais contrapõe o que extraiu dos anos de trabalho conjunto com Leonor Brandão de Mello: “a aprendizagem pelo saber”.
No início da década de 2000, com a CVP sob presidência de Maria de Jesus Barroso, Leonor Brandão de Mello e Luísa Nobre encetam trabalhos de limpeza, acondicionamento, organização e descrição do arquivo. Sobre a organização do arquivo da CVP, Luísa Nobre assume que “não está catalogado, está sim organizado por assuntos e cronologicamente, não existindo instrumentos de pesquisa”. É uma organização que pretende responder às necessidades de consulta imediata pelos investigadores, mas frágil por depender exclusivamente de Luísa e da localização dos documentos que tem de memória.
A Primeira Guerra Mundial, que em 2014 completou 100 anos, é um dos temas que mais atrai os investigadores e utilizadores deste arquivo. Mas a presença e actuação da CVP em múltiplas situações de emergência, nos planos nacional e internacional, há 150 anos, torna o arquivo desta instituição plurifacetado, reunindo documentação sobre acontecimentos tão diversos como a guerra civil de Espanha, as inundações de Lisboa em 1967, o incêndio no Chiado em 1988 ou o acidente de Castelo de Paiva em 2001 (ver caixa).
Ao longo da sua história, a Cruz Vermelha Portuguesa, por si só ou enquadrada no seu Movimento Internacional, tem prestado auxílio em cenários emergentes de conflitos armados, tanto em território nacional, como internacional, que se refletem na documentação preservada, sendo de destacar os seguintes eventos:
– Movimentos revolucionários e campanhas coloniais de Portugal;
– Primeira Grande Guerra;
– Guerra Civil de Espanha;
– Segunda Guerra Mundial;
– Invasão da Índia Portuguesa pela União Indiana;
– Revolução Romena;
– Conflitos da Ex-Jugoslávia;
– Guerra Civil de Angola;
– Conflitos no Darfur/Sudão, Moçambique e Timor-Leste, entre outros.
No quadro dos grandes desastres e das catástrofes naturais, a Cruz Vermelha Portuguesa detém igualmente informação muito relevante, decorrente da sua intervenção, merecendo destaque os seguintes acontecimentos:
– Gripe Pneumónica (1918-19) e Tuberculose (1949);
– Sismos no Faial (1926), na Grécia (1953), em Agadir (1960) e S. Jorge, Açores (1964 e 1990);
– Ciclone em Portugal (1941);
– Desastres ferroviários de Vila Franca de Xira (1947), de Alcafache (1985), de Póvoa de Santa Iria (1986) e de Santa Cruz de Benfica (1989);
– Inundações no Distrito de Lisboa (1967 e 1983);
– Incêndio no Chiado (1988);
– Acidente com voo da Martinair em Faro (1992);
– Temporais no Alentejo e Açores (1997);
– Cheias em Moçambique (2000);
– Acidente da Ponte Hintze Ribeiro, Castelo de Paiva (2001);
– Vagas de calor e incêndios em Portugal (2003 e 2005);
– Tsunami na Ásia (2004);
– Sismos no Paquistão (2005) e China (2008);
– Tufão na Birmânia (2008);
– Vaga de frio em Portugal (2008);
– Terramoto no Haiti (2010);
– Chuvas intensas na Ilha da Madeira (2010 e 2012);
– Sismo e tsunami no Japão (2011).
Luísa Nobre está sozinha há quatro anos, desde que Leonor Brandão de Mello se aposentou, herdando-lhe os conhecimentos e as inúmeras funções no Serviço Histórico-Cultural, incluindo os trabalhos no arquivo. Faltam-lhe recursos, mas procura essencialmente dar atenção a quem procura o arquivo, tentando não falhar nenhuma marcação com os utilizadores e encaixá-los de modo a não estarem muito tempo à espera. Os utilizadores são, aliás, um elemento funtamental para si, nota-se-lhe no discurso. Talvez porque o espaço de leitura de documentos é exíguo e demasiado próximo da sua secretária? Ou talvez porque Luísa tem uma afectividade especial, tendo em conta o que faz e o público que quer manter e incrementar, “à volta deste espólio riquíssimo”? Luísa diz que não sabe bem, mas responde com um facto: “torno-me sempre amiga dos meus investigadores, isso eu sei”. São meses e meses em que os rostos se repetem e as conversas se alimentam, como com aquela investigadora que esteve consigo de Janeiro a Agosto a pesquisar para a dissertação de doutoramento. Quanto lhe perguntamos sobre a afectividade que coloca no trabalho que faz, prefere não assumi-la como estritamente sua, mas como característica da própria instituição onde está há mais de vinte e cinco anos: “isso é de ser da CVP, é o espírito de quem trabalha aqui”.
O Arquivo Histórico da Cruz Vermelha Portuguesa está aberto nos dias úteis, das 10.00 horas às 17.00 horas, sendo necessário efetuar marcação prévia. A marcação pode ser feita através dos telefones 213 913 900 e 213 913 928 ou do email biblioteca@cruzvermelha.org.pt .