Em 1996, a Provedoria da Justiça destacava o papel e o valor das bibliotecas. Constatava a existência de EP “que não respeitam a imposição legal, quer quanto à existência de biblioteca, quer quanto à quantidade de volumes (livros e revistas) por forma a respeitar a liberdade de escolha do recluso.” E ainda: “estabelecimentos centrais, teoricamente com mais espaço e maior disponibilidade financeira, em que a relação entre o número de reclusos e a quantidade de livros é mínima (…) em muitos casos, os estabelecimentos estão mal equipados no que respeita à qualidade e variedade dos livros” (Relatório sobre o sistema prisional – 1996). Desde 2011 (Decreto-Lei 51/2011, de 11 de abril, artigos 93º e 94º) que a lei estipula obrigatoriedade de existência de serviço de leitura e biblioteca “para todos os reclusos” – cuja organização “compete aos serviços responsáveis pelo acompanhamento da execução da pena, fomentando-se a colaboração dos reclusos na sua gestão e na formulação de propostas para aquisições que considerem de interesse” (artº 94º). Num relatório oficial (Olhar para o futuro para guiar a ação presente – 2017), são identificados 49 EP, mais de 13000 reclusos, e só 1 com biblioteca (Santa Cruz do Bispo), omitem-se bibliotecas e leitura nas propostas de renovação dos estabelecimentos.
O Ministério da Justiça ainda não contempla nos quadros de EP profissionais de bibliotecas ou mediadores de leitura, ignorando as orientações da IFLA (Orientações para serviços de biblioteca para reclusos, 2015. Trad. port. 2016), ao contrário do que já sucede em numerosos países, por exemplo em Espanha e no Brasil, onde existem Bibliotecários e bibliotecas no contexto prisional. A Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) produz anualmente “relatório de diagnóstico sobre as condições de funcionamento das bibliotecas com inclusão de propostas de melhoria”. Algumas práticas relevantes de trabalho em prisões portuguesas desenvolvidas por, e/ou com bibliotecas, públicas e escolares, envolvendo bibliotecários ou outros profissionais, são ainda, infelizmente, pouco divulgadas e estudadas.
Existem bibliotecas públicas que garantem um vai-vem de livros colmatando a inexistência ou a pobreza de recursos das Bibliotecas Prisionais, por ex. em Viana do Castelo, Penafiel, Beja. Salvo raras exceções, falta a regularidade da oferta cultural. Em contexto do projeto plurianual Leituras em Cadeia, a Biblioteca Municipal de S. Domingos de Rana foi mais longe, tornando-se numa parceira fundamental nesta iniciativa da Fundação C. Gulbenkian, com apoio da DGRSP, com reflexos estruturantes na organização dos serviços de leitura – incluindo instalações, gestão de aquisições, tratamento documental, referência e circulação. Este projeto permitiu identificar e suprir carências das coleções, promoveu gestão colaborativa, e formação de recursos humanos; desenvolveu em contexto, sempre em articulação com a biblioteca pública e a biblioteca escolar do Agrupamento de Escolas Matilde Rosa Araújo, abordagens diversificadas de mediação leitora, artística e cultural, como sessões de cinema, pensamento, narração oral, ilustração.
Esta visão, alinhada com orientações internacionais, teve um ponto alto na formação de reclusas, usando, com reconhecido sucesso, estratégias próximas do conceito pedagógico de Escola Oficina e da Educação ao Longo da Vida. Em paralelo, desenvolveu capacitação em contexto do projeto para técnicos do EP e docentes da escola na prisão, promovendo sustentabilidade numa gestão coerente das bibliotecas do EP (hoje em 5 pavilhões). Com o apoio do CFCO, decorreram ainda 2 ofertas de formação contínua creditada (uma em Lisboa, outra no Porto) frequentadas por profissionais de serviços prisionais, docentes e mediadores de diferentes pontos do País, assim se comprovando a existência de necessidade e de interesse nesta área de trabalho técnico, educativo, cultural e social.
Verifica-se que, para além de iniciativas mais ou menos pontuais centradas na leitura, a existência de um serviço de referência de qualidade na biblioteca prisional cria oportunidades diárias para aprofundar a literacia, num processo distinto do percurso escolar – importante, sobretudo, para quem guardou má memória do ensino formal.
As metodologias não formais, enquadradas pela biblioteca, abrem espaço-tempo privado, e livre, para o crescimento interior de cada pessoa em reclusão. A privacidade e autonomia neste espaço-tempo são particularmente preciosas para quem está confinado, por vezes com horizonte de largos anos, em idades jovens ou menos jovens. A participação ativa de reclusas, técnicos e docentes na gestão da biblioteca permitiu não apenas identificar melhor muitos problemas mas também encontrar soluções, de que destacamos apenas dois exemplos – o empréstimo inicial (no momento da entrada no EP são fornecidos livros para leitura em cela durante o período em que se está confinado pelas regras de segurança, entregues individualmente, e diferenciadamente conforme o perfil leitor) e as sessões regulares de cinema, com sugestões de filmes organizadas com as reclusas leitoras potenciais, e debate imediato, transformando tempo de ócio em tempo de reflexão crítica, partilha e aprendizagem.
Quem pode imaginar uma biblioteca contemporânea sem acesso a modernas tecnologias da informação? Ao longo do projeto, tornou-se evidente a importância do tratamento técnico documental com meios informáticos adequados, incluindo os que não requerem ligação à internet para funcionar. Um computador com software normalizado de gestão documental faz a diferença – contudo, ainda existe muito caminho a percorrer para harmonizar normas de segurança, evolução tecnológica e requisitos correntes da transição digital de que tanto se fala, e a que não escapam os estabelecimentos prisionais nem, sobretudo, a vida quotidiana fora deles.
Um estabelecimento prisional é um lugar de permanência temporária de curta ou longa duração. Para as pessoas que aguardam julgamento (designados como “preventivos”) é um não-lugar que se prolonga dia a dia, podendo no limite, em Portugal, abranger 4 anos da sua vida. No que toca aos restantes (com pena decidida pelo tribunal), é também um lugar onde por vezes se espera pela correção de erro judiciário ou por modificação da pena/medida de coação, com alteração de tempo e/ou de lugar – e pode também ser tempo e lugar de preparação para a reinserção na sociedade e na vida ativa.
Recordemos que cada EP gere múltiplos serviços. Em todos: residência, alimentação, higiene pessoal, exercício físico exterior, lavandaria para uso dos reclusos, acesso regulamentado a telefone, pequenas compras, consultas médicas e de psicologia (parcerias com entidades privadas), apoio por técnicos de reinserção/serviços sociais, segurança (guardas), assistência religiosa. Em alguns: tarefas remuneradas no interior (ex. agropecuária), tarefas remuneradas no exterior (RAVI), espaço desportivo interior, atividades pontuais/anuais de âmbito cultural, educativo, desportivo – projetos geralmente de iniciativa exterior (ex. Ópera na Prisão, Leiria), escola, biblioteca (casos de parceria com bibliotecas públicas), acesso a computadores com ou sem internet. A Biblioteca Prisional é um serviço para todos os reclusos – e por isso inclusivo – e simultaneamente um dos serviços de todo o EP ajustado à sua missão, tipologia e características. Sem deixar de ser uma biblioteca – e por isso disposta e enriquecida pelo trabalho em rede, nomeadamente com a biblioteca pública.
Associações como a BAD podem e devem desempenhar um papel precioso na evolução desejável deste campo profissional que é simultaneamente um desafio cívico e político a uma sociedade democrática. Para além da dinamização de um grupo de trabalho sobre esta matéria, que seria sem dúvida muito útil e uma forma de dar visibilidade ao que se faz e ao que falta fazer, há um espaço de intervenção e um imperativo ético – se quisermos um futuro mais seguro, mais justo, mais humano para todos. Será necessário comunicar com os decisores dos diversos níveis do sistema – Ministério, Diretores dos Estabelecimentos Prisionais, responsáveis por Centros Educativos, Diretores de Bibliotecas Públicas dos territórios que incluem EP, entre outros – de forma a atualizar a perceção das estruturas dirigentes sobre a leitura e o papel das bibliotecas na construção das literacias e dos meios para a desejada inserção? Da mesma forma que uma prisão é muito mais que um depósito de seres humanos, a biblioteca é muito mais que um armazém de livros.
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LINDEMANN, C. (2020). Livros além das grades: por que focar nas Bibliotecas Prisionais? Entrevista com Lisa Krolak, do “Instituto para a Aprendizagem ao Longo da Vida” da UNESCO URL. https://biblioteconomiasocial.blogspot.com/2020/06/livros-alem-das-grades-por-que-focar.html (Acedido em 20.01.2022)
PÉREZ PULIDO, M., org. (2007). Dossier Bibliotecas de prisiones, in Educación y biblioteca, Ano 19, n. 158, p. 61-109. Disponível em URL: https://dialnet.unirioja.es/ejemplar/154960 (Acedido em 30.01.2022)
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VOGEL, Brenda (2009) The prison library primer : a program for the twenty-first century, Lanham, Scarecrow Press. ISBN 978-0-8108-5403-1. Primeiras páginas disponíveis em URL: https://www.amazon.com/Prison-Library-Primer-Program-Twenty-First/dp/0810854031 (Acedido em 30.01.2022)
Maria José Vitorino
Miguel Horta
Laredo Associação Cultural